Lipidose hepática em gatos: fisiopatogenia, diagnóstico e tratamento

Lipidose hepática em gatos: fisiopatogenia, diagnóstico e tratamento

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Também conhecida como “fígado gorduroso”, a lipidose hepática é a doença hepatobiliar mais comum em felinos. Veja em detalhes os tópicos de maior relevância sobre a doença

O fígado é um órgão nobre que desempenha funções primordiais para a manutenção da homeostase. Dentre elas, podemos citar a participação na digestão, na absorção e no metabolismo de nutrientes, além de armazenamento, desintoxicação, catabolismo e excreção de inúmeros metabólitos. O fígado é o segundo maior órgão do corpo e estima-se que desempenhe mais de 1.500 funções metabólicas.

O que é lipidose hepática

A lipidose hepática (LH), também chamada de “fígado gorduroso” é uma síndrome bem reconhecida em medicina felina e é caracterizada pelo acúmulo excessivo de triglicerídeos no fígado. A doença pode ocorrer em associação com outras doenças subjacentes como obesidade, pancreatite, diabetes e colangiohepatite, ou pode ser idiopática, quando a causa primária não é detectada.

Gatos com LH frequentemente apresentam histórico de longo período de inapetência, que pode estar relacionada a manejo alimentar inadequado, eventos estressantes ou fatores crônicos relacionados às comorbidades citadas acima.

Este artigo abordará a complexa fisiopatogenia da LH, além de diagnóstico, tratamento, abordagem nutricional e prevenção desta importante afecção na clínica de pequenos animais.

Fisiopatogenia da Lipidose Hepática

A etiopatogenia da LH ainda não está completamente elucidada pela ciência. Acredita-se que uma combinação de fatores seja responsável pelo seu desenvolvimento, como:

  • Excessiva mobilização periférica de lipídeos
  • Deficiência na formação de lipoproteínas
  • Lipogênese excessiva
  • Inibição da oxidação lipídica
  • Inibição da síntese de lipoproteínas de densidade muito baixa (VLDL)

A lipidose hepática em gatos geralmente surge quando há longos períodos de inapetência (ex: 36 horas). Durante a privação alimentar, o glicogênio hepático armazenado previamente servirá como fonte de energia reserva para o organismo.

Se a ingestão alimentar permanecer comprometida mesmo após os estoques de glicogênio hepático serem consumidos, ocorrerá diminuição dos níveis plasmáticos de insulina na tentativa de manter a glicemia e, com isso, há o estímulo à lipólise periférica.

Os ácidos graxos depositados no tecido adiposo são, então, mobilizados para geração de energia, e a taxa de oxidação no fígado aumenta. Com isso, inicia-se uma série de disfunções metabólicas deletérias ao organismo do animal, uma vez que a chegada de lipídios ao fígado excede sua capacidade de oxidação.

A liberação maciça de triglicerídeos na circulação pode levar à disfunção hepatocelular, pois o acúmulo de gordura nos hepatócitos compromete a função dessas células e afeta toda a integridade do organismo do animal. Estima-se que mais de 70% dos hepatócitos estejam comprometidos na presença de LH (Figura 1).

Figura 1: Biópsia hepática de felino com lipidose hepática evidenciando acúmulo de lipídeos nos hepatócitos. Fonte: Fascetti & Delaney, 2012.

Por que os gatos são mais acometidos?

Embora as causas não estejam completamente esclarecidas, a lipidose hepática é mais comum no gato do que no cão. Algumas diferenças anatômicas e metabólicas nos felinos explicam parcialmente as razões que os tornam mais susceptíveis a essa enfermidade.

A presença do ducto pancreático e sua unificação com ducto biliar antes de entrar no duodeno é um dos fatores que explicam a possibilidade da LH se desenvolver secundariamente a outras afecções hepáticas e pancreáticas nos felinos, como colestase, colangiohepatite, insuficiência hepática, pancreatite e diabetes.

Boa parte dos gatos que desenvolvem a doença são obesos que passaram por um período de privação alimentar no qual suas reservas de gordura foram intensamente mobilizadas, levando a uma intensa mobilização de gordura periférica. Além disso, a obesidade em felinos leva à resistência insulínica e ao diabetes, doença que também estimula o aumento da mobilização dos triglicerídeos para o fígado, agravando ainda mais o quadro.

Cães também podem ter LH?

Sim, cães também podem desenvolver doenças hepáticas. A LH pode ocorrer em situações em que há a presença de comorbidades ou outros fatores de risco que culminam em excesso de triglicerídeos sendo mobilizados para os hepatócitos. No entanto, os felinos apresentam maior tendência ao desenvolvimento da enfermidade, seja pelos fatores citados acima como também por mecanismos ainda não totalmente elucidados pela ciência.

Principais sinais clínicos da lipidose hepática

As manifestações clínicas mais frequentemente observadas na presença de LH são:

  • Perda de peso
  • Anorexia ou hiporexia
  • Vômitos
  • Palidez ou icterícia
  • Constipação ou diarreia
  • Letargia

Como diagnosticar a lipidose hepática em felinos?

O diagnóstico é baseado na identificação de alterações clínicas associada ao histórico de anorexia prolongada ou qualquer fator que cause desequilíbrio nutricional, como modificações dietéticas severas para redução de peso, por exemplo.

No exame físico podem ser observadas obesidade, hepatomegalia e icterícia em gatos. Já a ultrassonografia é o exame de imagem de escolha e pode evidenciar a hepatomegalia e o aumento difuso da ecogenicidade hepática. Análises laboratoriais podem detectar alterações bioquímicas por meio da mensuração de enzimas hepáticas. Além disso, a biópsia hepática possibilita diferenciar a lipidose de outras afecções do fígado e confirmar o diagnóstico da doença.

Formas de tratamento

Por ser uma doença grave que pode causar sérias complicações e até mesmo levar o animal a óbito, o diagnóstico e a intervenção terapêutica devem ser realizados em tempo hábil para aumentar as chances de sucesso no tratamento.

O manejo terapêutico inicial deve ser direcionado para a correção de desequilíbrios hidroeletrolíticos e para evitar complicações como encefalopatia hepática e infecção. A intervenção nutricional é ponto-chave para restabelecer o metabolismo de nutrientes e será abordada com mais detalhes a seguir.

A resolução da lipidose hepática em felinos associada com comorbidades como pancreatite e infecções depende do sucesso no tratamento do distúrbio concomitante.

Abordagem nutricional em detalhes

A abordagem nutricional enteral é a base da terapia. Se o gato não pode ser anestesiado com segurança para a colocação de uma sonda esofágica, um tubo nasoesofágico deve ser colocado, e uma fórmula enteral adequada deve ser administrada até que o gato esteja estabilizado para a colocação de uma sonda mais duradoura, até que o paciente restabeleça o apetite voluntário.

Os pontos de maior relevância na abordagem nutricional são:

Energia
O fornecimento de quantidade adequada de energia é fundamental para o manejo bem-sucedido do gato com LH. No entanto, não há diretrizes bem estabelecidas quanto à necessidade energética de felinos nesta condição.

Geralmente, se preconiza fornecer inicialmente a necessidade energética de repouso (NER), que é de 70 kcal x peso corporal0,75, e progredir até que a necessidade energética de manutenção (NEM), que é de 100 kcal x peso corporal0,67 seja tolerada pelo felino.

A alimentação forçada com seringas está em desuso e é contra-indicada pois pode causar aversão alimentar e gerar mais estresse para o gato, além de ser improvável de fornecer a totalidade das necessidades nutricionais.

Proteína
Por ser uma espécie de alta exigência protéica e que apresenta gliconeogênese contínua para obtenção de energia, a proteína não deve ser restringida em felinos com lipidose hepática, exceto se o animal apresentar sinais de encefalopatia hepática. Ainda assim, o fornecimento de proteína não deve ser abaixo da necessidade mínima, que é de 3,97 g de proteína por kg de peso corporal0,67 para um felino adulto em manutenção.

Atenção especial deve ser dada aos aminoácidos taurina e arginina, que são essenciais para o gato e desempenham funções únicas no organismo.

Potássio
A hipocalemia é um achado relativamente comum em gatos com LH, e pode ser deletéria ao animal por prolongar a anorexia. De acordo com Fascetti & Delaney (2012), dietas para gatos com LH devem conter de 0,8 a 1% de potássio na matéria seca, considerando uma fórmula que contenha 4.000 kcal/kg. A suplementação também pode ser feita respeitando a quantidade de 2 a 6 mEq/dia.

L-carnitina
A fonte primária de carnitina é a ingestão dietética e a síntese hepática. Diversos estudos investigaram a relação entre a carnitina e a perda de peso em gatos e a ocorrência de LH. Embora mais pesquisas ainda sejam necessárias, evidências demonstraram efeitos benéficos na suplementação deste nutriente na dose de 250 a 500 mg de L-carnitina por dia, auxiliando na recuperação e aumentando a taxa de sobrevivência dos animais doentes.

Palatabilidade
A aversão alimentar é um aspecto importante relacionado à inapetência apresentada pelos gatos com LH, e por isso é preciso uma abordagem bastante cuidadosa no que diz respeito ao restabelecimento do apetite voluntário destes animais.

Gatos que se recusam a aceitar uma dieta quando estão nauseados continuarão a rejeitar essa mesma dieta mesmo após a recuperação do apetite. Isso acontece devido a associação prévia que fizeram com o momento desagradável no qual o alimento lhe foi oferecido.

Como prevenir a lipidose hepática felina?

Uma vez que a enfermidade pode se desenvolver secundariamente a doenças crônicas, é importante adotar o monitoramento de gatos que apresentam condições prévias que favoreçam o desenvolvimento desta afecção, intervindo sempre que necessário para que a LH não se instale.

Adotar uma dieta completa e balanceada que atenda às necessidades nutricionais específicas dos felinos é de extrema importância para a manutenção do metabolismo saudável destes animais.

Os tutores devem observar o apetite de seu animal em casa para garantir que a quantidade necessária seja ingerida de acordo com porte, idade e estilo de vida do pet. Por outro lado, excessos também devem ser evitados, uma vez que a obesidade é um dos fatores de risco da doença, além de ser uma condição inflamatória crônica que predispõe ao surgimento de outras complicações deletérias à saúde dos animais.

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Referências bibliográficas

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