Tríade felina

Tríade felina

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A tríade felina é uma condição que abrange três doenças inflamatórias de forma simultânea, envolvendo o fígado, o pâncreas e o intestino delgado. É observada principalmente nos gatos em virtude das peculiaridades da anatomia específica nessa espécie e da estreita proximidade dos três órgãos envolvidos. O artigo abaixo faz uma revisão dessa complexa enfermidade representada pela tríade felina, considera seu diagnóstico e ainda aborda as recomendações terapêuticas para cada uma das condições envolvidas.

Destaques
  • A tríade é uma doença específica dos gatos, supostamente relacionada com a estreita proximidade do fígado, do pâncreas e dos intestinos nessa espécie.
  • Em geral, acredita-se que uma infecção ascendente por bactérias intestinais deflagre a doença, embora também haja suspeita de um componente imunomediado.
  • Os sinais clínicos podem ser muito sutis ou inespecíficos, havendo a necessidade de uma avaliação diagnóstica completa e minuciosa para confirmar a condição.
  • Embora uma combinação de sinais clínicos, exames de sangue e técnicas de diagnóstico por imagem possa muitas vezes sugerir a tríade, é necessária a realização de histopatologia para obter o diagnóstico definitivo.
  • A terapia consiste no tratamento das três condições ao mesmo tempo e, com frequência, envolve o uso de antibióticos e imunossupressores.
  • O prognóstico é tipicamente reservado a bom, embora possa ser grave nos casos mais agudos.

Causas e demais fatores agravantes

A anatomia do sistema hepatobiliar felino é notável e distinta, porque, na maioria dos gatos, os ductos pancreáticos e biliares se unem para formar um ducto final comum que desemboca no duodeno. Em 10 a 20% dos gatos, também há um ducto pancreático acessório separado, que não se comunica com o ducto biliar comum, ingressando no duodeno separadamente. Essa estreita comunicação entre o fígado, o pâncreas e o duodeno é um dos fatores que supostamente predispõe os gatos à inflamação concomitante nesses três órgãos.
Outro fator é representado pela colonização bacteriana muito elevada do duodeno felino, que contém 100 vezes mais bactérias do que o duodeno canino. Portanto, um único episódio de vômito causado pelo acometimento de apenas um órgão pode provocar refluxo de secreções duodenais e, consequentemente, permitir a entrada de bactérias no fígado e no pâncreas.

Doença Inflamatória Intestinal

A etiologia da enteropatia inflamatória é muito complexa e a resposta final envolve muitos fatores inflamatórios.
Embora seja uma doença supostamente multifatorial, considera-se que o principal mecanismo na doença inflamatória seja uma resposta imune inadequada a antígenos alimentares ou bacterianos apresentados à mucosa gastrintestinal. A infiltração celular resultante (inflamação) gera alterações da mucosa (p. ex., embotamento/atrofia das vilosidades, hipertrofia das criptas), culminando em má-digestão e má-absorção.

Colangite

Embora a terminologia prévia para esse grupo de doenças fosse colangio-hepatite, o grupo de estudo do fígado da World Small Animal Veterinary Association (WSAVA, Associação Mundial de Veterinários de Pequenos Animais) sugeriu que o termo colangite seja mais apropriado, pois se trata principalmente de uma doença da árvore biliar. Ocorrem duas principais formas de doença inflamatória: a forma neutrofílica (previamente descrita como supurativa) e a forma linfocítica (anteriormente referida como linfoplasmocitária ou não supurativa). A primeira versão é aquela que costuma ser considerada como parte do complexo da tríade felina, com uma infiltração, como o próprio nome sugere, principalmente de neutrófilos. Acredita-se que essa forma resulte de uma infecção bacteriana ascendente vinda do trato intestinal. Na segunda forma, o infiltrado é predominantemente linfocítico com plasmócitos; apesar de pouco compreendida, supõe-se que a etiologia seja imunomediada ou, possivelmente, resulte de uma colangite neutrofílica crônica.

Pancreatite

A forma crônica de pancreatite é muito mais comumente observada em gatos, além de ser a forma reconhecida no complexo da tríade felina. Acredita-se que a etiologia da pancreatite seja imunomediada, embora uma infecção bacteriana ascendente também possa ser a causa em alguns casos. Em geral, a inflamação presente na pancreatite crônica é principalmente linfocítica, sendo comum a constatação de fibrose e atrofia acinar.

Manifestações clínicas

Embora a tríade felina envolva diferentes órgãos, os sinais clínicos podem sugerir o distúrbio em um único órgão. Sinais gastrintestinais (como vômitos e diarreia) estão frequentemente presentes. A pancreatite crônica em gatos é tipicamente silenciosa ou produz alterações muito sutis; por isso, a maioria dos casos de tríade felina exibirá sinais compatíveis com enteropatia inflamatória ou colangite (ou ambas simultaneamente).

Os sinais comuns de enteropatia inflamatória são vômito e diarreia crônicos, acompanhados muitas vezes por perda de peso. Tipicamente, os gatos de meia-idade a idosos são acometidos, embora animais de até 1 ano de idade já tenham sido diagnosticados. Dessa forma, a idade não deve ser utilizada como um fator isolado para descartar a doença. Os sinais podem ser leves a graves; além disso, uma apresentação aguda também é possível, porém menos frequente.

Embora os gatos com colangite possam se apresentar com os mesmos sinais da enteropatia inflamatória, a icterícia é uma característica indicativa da doença e, com frequência, o motivo para a consulta veterinária. Os sinais clínicos podem variar entre as formas neutrofílica e linfocítica, embora eles frequentemente se sobreponham.

Conforme já foi dito, a pancreatite crônica em gatos costuma ser uma doença silenciosa ou se apresenta com sinais muito leves ou inespecíficos (anorexia, letargia). Vale lembrar que (ao contrário dos cães) o vômito não é o achado clínico mais comum na pancreatite felina, sendo que apenas cerca de um terço dos gatos se apresenta com esse sinal. A pancreatite crônica pode levar à insuficiência pancreática exócrina (IPE) e, com isso, achados como fezes volumosas, perda de peso e apetite voraz também podem ser observados.

Em suma, a tríade pode incluir qualquer um dos sinais clínicos descritos anteriormente e sempre deve ser considerada como um possível diagnóstico diferencial nos casos em que um gato que apresentar perda de peso crônica, vômito, diarreia ou icterícia.

Diagnóstico

Conforme mencionado previamente, a identificação de qualquer um dos três distúrbios dentro do complexo da tríade felina deve induzir à investigação do animal em busca de doenças concomitantes. O diagnóstico da enteropatia inflamatória é basicamente um diagnóstico de exclusão, exigindo a eliminação de outras causas de doença gastrintestinal crônica (tipicamente endoparasitose, diarreia responsiva a alimentos ou antibióticos, infecções intestinais por protozoários ou bactérias, doença neoplásica, etc.).

Histopatologia

Para todas as três condições que compõem a tríade felina, o diagnóstico definitivo só pode ser confirmado por meio histopatológico. Embora existam diferentes métodos de coleta de amostras disponíveis, o clínico deve ter ciência de suas vantagens e limitações.

Tipicamente, o padrão inflamatório observado na enteropatia inflamatória é linfoplasmocitário; no entanto, também é possível o encontro de uma forma granulomatosa ou eosinofílica. Nos casos com etiologia infecciosa, observa-se uma inflamação supurativa. No primeiro tipo de infiltrado inflamatório, pode não ser fácil diferenciar o quadro do linfoma, sendo comum a necessidade de testes diagnósticos mais avançados como a imuno-histoquímica.

A avaliação microscópica de amostras do fígado é útil para formular o diagnóstico de colangite. Embora com frequência seja possível, às vezes não é fácil fazer uma diferenciação clara entre a forma neutrofílica e linfocítica nos locais onde se observa um padrão inflamatório misto.

O diagnóstico de pancreatite é feito por via histopatológica, mas a importância clínica das alterações observadas nem sempre é clara; por isso, é preciso ter cuidado ao se interpretar os achados.

Tratamento

A princípio, os gatos com sinais mais graves necessitam de cuidados de suporte, incluindo fluidoterapia intravenosa, analgesia, antieméticos, antiácidos e correção de anormalidades eletrolíticas. Os tratamentos mais específicos visam controlar cada uma das três condições do complexo da tríade felina.

O suporte de nutrição enteral (por exemplo, via tubo nasoesofágico ou inserido via esofagostomia) é necessário em gatos com anorexia intratável, para evitar o desenvolvimento de lipidose hepática. Uma dieta hipoalergênica (proteína inédita ou hidrolisada) é a escolha para o tratamento de enteropatia inflamatória. Uma resposta positiva à nova dieta (se rigorosamente seguida) deve ser vista em até 2 a 3 semanas. Ao contrário do caso em cães, não se acredita que uma alimentação pobre em gordura seja útil em gatos com pancreatite e, portanto, esse tipo de dieta não é recomendado atualmente.

Já os antibióticos são recomendados para colangite neutrofílica, sendo que a escolha ideal é feita com base nos resultados da cultura, quando disponíveis. Tipicamente, são isoladas bactérias gram-negativas (E. coli), embora o encontro de microrganismos gram-positivos e anaeróbios na cultura também seja comum. Portanto, há necessidade de um antibiótico de amplo espectro nos casos em que não se identifica o agente bacteriano envolvido.

O metronidazol é o antibiótico de escolha para enteropatia inflamatória, pois tem efeitos imunomoduladores; esse agente também evita a proliferação bacteriana e regula a flora intestinal. É preciso tomar cuidado com o uso prolongado, em virtude dos efeitos colaterais (neurotoxicidade) relatados, embora tais efeitos sejam muito raros em doses baixas.

A prednisona ou a prednisolona (2-4 mg/kg diariamente VO) constituem a primeira linha terapêutica para os casos de enteropatia inflamatória irresponsivos ao manejo dietético. Outros agentes imunossupressores (ciclosporina, clorambucila) podem ser utilizados em combinação com esteroides ou no lugar destes quando os efeitos colaterais forem muito acentuados ou quando a gravidade da doença exigir o uso de vários medicamentos.

Os esteroides podem ser benéficos para diminuir a inflamação na pancreatite, mas o uso desses agentes em tal condição ainda é discutível; eles não devem ser utilizados, por exemplo, em pancreatite supurativa. Nos casos mais evidentes de tríade felina, fica indicada a utilização de antibióticos e imunossupressores, sendo recomendável o uso simultâneo. Na suspeita de uma etiologia bacteriana, deve-se evitar o emprego de altas doses de esteroides,  porém, deve-se garantir uma boa cobertura antibiótica concomitante sempre que os esteroides forem necessários.

Considerações finais

A tríade felina é uma doença complexa que sempre deve ser considerada em gatos com sinais clínicos sugestivos de qualquer uma das três condições ou naqueles diagnosticados com enteropatia inflamatória, colangite ou pancreatite. Como o tratamento consiste na abordagem de cada uma das condições, o conhecimento da fisiopatologia de cada uma delas se torna obrigatório. O prognóstico é geralmente bom, mas alguns pacientes permanecem resistentes ao tratamento ou podem apresentar recorrência do problema.

Artigo completo pela Drª Isanelle Cattin. O conteúdo completo você confere na Revista Focus 23.2 – Questões Gastrintestinais.