Mitos e verdades sobre o carboidrato na alimentação de cães e gatos

Mitos e verdades sobre o carboidrato na alimentação de cães e gatos

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LUCIANA DOMINGUES DE OLIVEIRA,

CAMILA BAPTISTA DA SILVA E RAQUEL VALIM LABRES

Como definimos uma dieta como “rica” ou “excessiva” em carboidratos? Não existe um consenso sobre a quantidade que pode ser considerada como “rica” ou “excessiva” de carboidratos para cães e gatos. As quantidades usuais de carboidratos encontradas em rações secas para cães e gatos variam entre 20% e 50%, de forma que essas quantidades já são consideradas por muitos como “excessivas” mesmo sem haver nenhum estudo que correlacione a ingestão de carboidratos (causa) e o aparecimento de doenças (efeito).

Cães e gatos são capazes de digerir e usar os carboidratos?

Cães e gatos são capazes de digerir e usar os carboidratos da dieta, como todos os mamíferos. A energia é fornecida pelo uso das proteínas, gorduras e carboidratos. Os gatos evoluíram consumindo dietas pobres em carboidratos, mas seu sistema digestivo e metabolismo podem se adaptar rapidamente à maior ingestão desse nutriente. A sugestão de que gatos podem ter dificuldade em se adaptar às refeições com alto teor de carboidratos baseia-se em duas observações:

1. Os gatos não têm glucoquinase, uma enzima usada para fosforilar a glicose dentro das células e 2. gatos não têm amilase salivar e, comparados com cães, podem ter menor atividade das enzimas envolvida na digestão de carboidratos

2. Enquanto nos cães, resultados indicam que adaptações genéticas permitiram que seus primeiros ancestrais modernos tenham sucesso ao ingerir uma dieta rica em amido em relação à dieta carnívora dos lobos, de forma que constituíram um passo crucial na domesticação dessa espécie.

Existem diferentes formas de carboidratos na dieta, incluindo açúcares simples, amidos de digestão rápida, amidos de digestão lenta e fibras dietéticas. As fontes de amido utilizadas pela indústria de rações ou pelos proprietários que fazem dietas caseiras são muito bem digestíveis para cães e gatos. Como exemplo podemos citar: arroz, arroz integral, milho, batata e batata-doce. O cozimento é necessário para tornar o amido digerível para os mamíferos, incluindo cães e gatos, que apresentam digestão superior a 90% desse nutriente.

Cães e gatos precisam de carboidratos?

É fato que cães e gatos saudáveis não precisam de carboidratos na dieta. Embora o carboidrato não seja um nutriente dietético essencial, a maioria das células do corpo, normalmente, usa glicose como sua principal fonte de energia. Algumas células podem usar fontes alternativas de energia, mas outras, especialmente as cerebrais, precisam de um fornecimento contínuo de glicose. A glicose é tão crítica para a sobrevivência que inúmeros sistemas estão em vigor para garantir um fornecimento consistente a nível celular. Na maioria das espécies, os carboidratos são usados como uma fonte pronta de glicose para atender demandas celulares. Quando o carboidrato dietético não é provido em quantidades suficientes, a proteína dietética é usada como fonte primária de glicose via gliconeogênese1,2. No entanto, estudos mais recentes in vivo descobriram que os gatos se adaptam a diferentes níveis de proteínas e carboidratos da dieta desde que o requisito mínimo para proteínas seja cumprido.

Os carboidratos podem causar obesidade?

É um erro comum achar que os carboidratos causam obesidade. A obesidade se instala quando há um balanço energético positivo, ou seja, quando a ingestão calórica excede a necessidade energética. As calorias são fornecidas não só pelos carboidratos, mas, principalmente, pelas gorduras e, de forma menos importante, pelas proteínas. Estudo prospectivo recente demonstrou que gatos alimentados com dietas ricas em carboidratos tinham menos gordura corporal e eram menos susceptíveis de se tornarem obesos que aqueles alimentados com dietas ricas em gordura.

ANOTE

Estudo prospectivo recente demonstrou que gatos alimentados com dietas ricas em carboidratos tinham menos gordura corporal e eram menos  susceptíveis de se tornarem obesos que aqueles alimentados com dietas ricas em gordura.

O excesso de carboidratos pode causar diabetes?

Diversos estudos do passado sugeriram que dietas ricas em carboidratos aumentariam o risco de diabetes mellitus em gatos, como postulado por Rand et al.6 que afirmaram que “o consumo excessivo de carboidratos refinados e facilmente digeríveis coloca uma demanda grande e prolongada de células-β pancreáticas para excessiva secreção de insulina, que, eventualmente, resulta em exaustão das células-β, causando diabetes”. No entanto, o pâncreas felino é menos responsivo à glicose e mais responsivo a aminoácidos como secretagogos, o que não é consistente com esta teoria 1,2. Além disso, de-Oliveira et al.7 mostram que o carboidrato dietético tem ainda menos impacto sobre a glicose pós-prandial e respostas à insulina em gatos saudáveis do que em cães ou humanos.

No entanto, o avanço da idade e obesidade devido a um estilo de vida pouco ativo e ingestão excessiva de calorias são os maiores fatores para o aparecimento do diabetes mellitus. Enquanto gatos saudáveis são capazes de usar carboidratos prontamente em dietas de boa qualidade, gatos diabéticos têm capacidade limitada para isso. A substituição do carboidrato da dieta por proteína pode ser um meio eficaz de retardar a liberação de glicose na corrente sanguínea. Numerosos estudos clínicos confirmam o benefício de dietas com alta proteína e baixo teor de carboidratos para gatos diabéticos, com consequente redução da necessidade de insulina ou melhora do controle glicêmico. Observou-se, ainda, que uma parcela dos gatos diabéticos que receberam dieta com alta proteína e baixo carboidrato, juntamente com insulinoterapia, foram capazes de descontinuar a insulina exógena completamente, a chamada remissão. Já os cães diabéticos se beneficiam de uma alimentação moderada em carboidratos e rica em fibras, que retarda a absorção da glicose.

A conclusão é que carboidratos adequadamente cozidos como parte de uma dieta nutricionalmente completa e balanceada são prontamente digeridos e utilizados por cães e gatos sem efeitos adversos, de forma que não se pode incriminar uma dieta “rica em carboidratos” como causadora de doenças. Em gatos, quando a ingestão de carboidratos é baixa, a ingestão de proteínas deve ser aumentada para aumentar a gliconeogênese, bem como favorecer a síntese proteica normal. Os carboidratos da dieta podem suportar as necessidades fisiológicas de glicose sem a necessidade de inclusão de alta quantidade de proteína para gliconeogênese. Muitas dietas pobres em carboidratos são ricas em gordura e podem aumentar o risco de obesidade. O excesso de calorias, seja de gorduras, proteínas ou carboidratos, contribui para a obesidade e problemas relacionados à obesidade.

A crescente prevalência de diabetes felina e canina parece ser devido à obesidade e ao envelhecimento, e não devido aos carboidratos da dieta. No entanto, uma vez que os gatos se tornem diabéticos, o uso de dietas ricas em proteína e pobres em carboidratos pode ser benéfica, enquanto os cães diabéticos são beneficiados com dietas ricas em fibras.

 

Referências bibliográficas

1. Laflamme, D. P. Cats and Carbohydrates: Implications for Health and Disease. Compendium: Continuing Education for Veterinarian. January 2010

2. Verbrugghe, A.; Hesta, M. Cats and Carbohydrates: The Carnivore Fantasy? Vet. Sci. 2017, 4, 55.

3. Axelsson, E. et al. The genomic signature of dog domestication reveals adaptation to a starch-rich diet. Nature. 2013 Mar 21;495(7441):360-4.

4. Green, A.S. et al. Cats are able to adapt protein oxidation to protein intake provided their requirement for dietary protein is met. J Nutr. 2008 Jun;138(6):1053-60.

5. Backus RC, Cave NJ, Keisler DH. Gonadectomy and high dietary fat but not dietary carbohydrate induce gains in body weight and fat of domesticcats. Br J Nutr 2007;98:641-650.

6. Rand JS, Fleeman LM, Farrow HE, et al. Canine and feline diabetes mellitus: nature or nurture? J Nutr 2004;134:2072S-2080S.

7. de-Oliveira LD, Carciofi AC, Oliveira MCC, et al. Effects of six carbohydrate sources on diet digestibility and postprandial glucose and insulin responses in cats. J Anim Sci 2008;86:2237-2246.

8. Kimmel, S.E. et al. Effects of insoluble and soluble dietary fiber on glycemic control in dogs with naturally occurring insulin-dependent diabetes mellitus.

J Am Vet Med Assoc 2000;216:1076–1081.