Entendendo a transfusão sanguínea em gatos e cães

Entendendo a transfusão sanguínea em gatos e cães

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A transfusão sanguínea em gatos e cães é um procedimento que pode ser necessário em alguns casos clínicos. Conheça os pontos importantes sobre o assunto!

Os primeiros estudos sobre grupos sanguíneos em cães tiveram início em 1910, sendo em 1950 demonstradas as primeiras transfusões sanguíneas na medicina veterinária. Somente em 1981 houve reconhecimento dos grupos sanguíneos em gatos, espécie esta que não apresenta um grupo sanguíneo universal.

Desde então, as técnicas para transfusão sanguínea em cães e gatos estão em constante evolução, assim como a capacitação dos médicos-veterinários, o que tem possibilitado a melhor abordagem de pacientes com quadros críticos e emergenciais.

O que é a transfusão sanguínea em gatos e cães?

A transfusão sanguínea é um procedimento que envolve a administração de sangue total ou componentes sanguíneos, incluindo plasma, glóbulos vermelhos, glóbulos brancos e plaquetas, indicado principalmente em quadros de anemia severa (por hemólise ou não-regenerativas) e hemorragia. O procedimento desempenha um importante papel no tratamento de animais em situações críticas, visando atender as necessidades básicas do organismo para manter a vida.

O doador canino deve pesar pelo menos 25kg e o felino 4kg, ser saudável, e ser submetido à avaliação prévia através de hemograma completo, perfil bioquímico e testes para doenças infecciosas como:

Tipos de transfusão

A transfusão sanguínea em cães e gatos pode ser feita a partir de sangue total fresco, sangue total estocado, papa de hemácias, plasma fresco congelado, plasma rico em plaquetas e crioprecipitado. Porém, os gatos geralmente recebem sangue total fresco ou estocado, uma vez que o volume de doação de sangue pequeno dificulta a separação de componentes (KISIELEWICZ, SELF, 2014).

O sangue total fresco fornece todos os componentes viáveis (hemácias, plaquetas, proteínas plasmáticas, fatores de coagulação), desde que utilizado até 8 horas após a coleta. É indicado em quadros de intensa hemorragia, distúrbios de coagulação, anemia hemolítica autoimune e não autoimune, anemia com trombocitopenia.

Já o sangue total estocado pode ser armazenado por 28-35 dias, e se difere do anterior pela ausência de plaquetas e fatores de coagulação funcionais. Pode ser usado em casos de anemia arregenerativa e hemorragia.

O uso de papa de hemácias pode ocorrer quando o animal apresentar anemia severa e necessite aumentar o aporte dos carreadores de oxigênio, como por exemplo nas hemoparasitoses intracelulares.

Quando o paciente apresentar hipoproteinemia, coagulopatias hereditárias ou adquiridas, como deficiência de viatamina K e coagulação intravascular disseminada (CID), o indicado é o uso de plasma fresco congelado, por ser rico em proteínas plasmáticas e fatores de coagulação.

As plaquetas são componentes extremamente sensíveis, o que dificulta a obtenção do plasma rico em plaquetas, que só pode ser administrado no período de 4-5 horas após a coleta, com imediato processamento para a separação. Quando disponível, é indicado em quadros de trombocitopenia acentuada e hemorragia severa incontrolável.

Por sua vez, o crioprecipitado, fonte de fatores VIII e XIII, fibronectina, fibrinogênio e fator de Von Willebrand, é utilizado nos casos de hemorragia decorrente da deficiência desses hemocomponentes.

Como saber se o animal deve ou não receber uma transfusão?

A decisão de administrar uma transfusão sanguínea a um animal deve ser baseada em considerações clínicas e laboratoriais, nunca negligenciando os potenciais riscos de reações adversas.

Pacientes com diagnóstico de afecções que levam ao desenvolvimento anemia severa decorrente de hemorragia, hemólise, eritropoiese ineficaz, anemia hemolítica, doença infecciosa ou neoplasia, além de quadros de hipovolemia, hipoproteinemia e trombocitopenia podem necessitar de transfusão de sangue.

Nesses casos, os animais devem ser avaliados caso a caso, levando em conta os sinais clínicos apresentados, como:

  • mucosas hipocoradas;
  • tempo de preenchimento capilar aumentado;
  • taquicardia;
  • taquipneia;
  • hipotermia;
  • pulso periférico fraco;
  • volume globular (VG) menor ou igual a 20%;
  • hematócrito (Ht) menor ou igual a 15% para cães;
  • hematócrito (Ht) menor ou igual a 12% para gatos;
  • contagem de plaquetas abaixo de 10.000/μL.

Entendendo as reações transfusionais

Reação transfusional consiste em qualquer efeito adverso indesejado que ocorra durante ou após uma transfusão sanguínea. Sua severidade e frequência são variáveis, pois dependem do hemocomponente utilizado e do receptor. Por isso, os pacientes devem ser devidamente avaliados com tipagem sanguínea e teste de compatibilidade antes da transfusão.

As reações transfusionais em cães e gatos podem ser classificadas em imunológicas (hemolítica e não hemolítica) e não imunológicas, agudas e tardias, como evidenciado na tabela a seguir.

Transfusão sanguínea em cães e gatos
Tabela 1: Classificação das reações transfusionais. Fonte: adaptado de RABELO, 2012.

Reações agudas

As reações transfusionais agudas caracterizam-se por ocorrer no período de 24 horas após o procedimento.

A reação hemolítica aguda é uma reação de hipersensibilidade do tipo II que acarreta hemólise intravascular, e pode levar a CID, choque, comprometimento renal e morte do animal. Assim, podem ser observados hipertermia, tremores musculares, vômito, taquicardia e dispneia.

Já a hipersensibilidade tipo I consiste na reação anafilática ou alérgica mediada por mastócitos e IgE, nas quais o paciente pode apresentar edema, eritema, prurido, vômito e dispneia secundária ao edema pulmonar.

Em casos nos quais o animal desenvolva reação à contaminação bacteriana e reação não hemolítica febril (contra plaquetas e leucócitos do doador), além dos sinais clínicos apresentados anteriormente, haverá febre durante ou pós-transfusão, podendo ou não levar à CID e insuficiência renal.

A sobrecarga circulatória pode ser observada em cardiopatas, nefropatas e pacientes que recebam volume transfusional excessivo ou em rápida velocidade de infusão. Por sua vez, a embolia aérea é ocasionada pela entrada de ar no equipo do receptor e a hipocalcemia pode ser decorrente de intoxicação por citrato.

Para evitar a ocorrência das reações agudas imunológicas, é realizado o teste maior de compatibilidade, no qual se observa o processo de aglutinação entre as hemácias do doador e o soro ou plasma do receptor quando não há compatibilidade. Porém, o resultado compatível não indica o mesmo grupo sanguíneo, mas sim que o receptor não possui anticorpos contra as hemácias do doador ou os possui em baixíssima quantidade.

Reações tardias

As reações tardias podem ocorrer após as 24 horas do procedimento, depois de dias, semanas ou até mesmo anos.

A púrpura pós-transfusional é uma reação imunomediada caracterizada pela diminuição do número de plaquetas, evidenciada na semana pós procedimento. Já a reação hemolítica tardia apresenta sinais clínicos semelhantes e é menos severa que a aguda, desencadeando hemólise extravascular, icterícia e anorexia.

Por fim, o animal receptor ainda pode contrair alguma doença infecciosa transmitida através do sangue do doador, caso não seja realizada uma triagem com os exames complementares adequados.

Para evitar a ocorrência das reações imunológicas tardias, pode-se lançar mão do teste menor de compatibilidade, através da avaliação da interação do soro ou plasma do doador com as hemácias do receptor.

Vale ressaltar que os testes de compatibilidade devem ser repetidos sempre que houver a necessidade de uma nova transfusão sanguínea em cães e gatos, pois o receptor pode desenvolver anticorpos contra as hemácias do doador, tornando-se incompatível.

O que é a primotransfusão?

A primotransfusão sanguínea em gatos e cães se refere à primeira transfusão de sangue que um animal recebe ao longo de sua vida.

Geralmente, cães apresentam uma pequena probabilidade de desenvolver uma reação hemolítica aguda por incompatibilidade sanguínea na primotransfusão, formando anticorpos contra as hemácias do doador. Esse evento é mais relatado nos gatos, provavelmente por essa espécie dispor de anticorpos naturais.

Desde a primeira transfusão, o cão ou o gato devem ser submetidos a um monitoramento constante (30 em 30 minutos) e rigoroso da frequência cardíaca e respiratória. Já a temperatura corpórea deve ser mensurada a cada 5-10 minutos. O médico-veterinário deve se alertar para uma possível reação transfusional caso haja alguma modificação dos parâmetros vitais e hipertermia, considerada quando ocorre elevação da temperatura em 1°C.

Também é importante monitorar a pressão arterial e o débito urinário, com o intuito de detectar hipotensão.

Tipos sanguíneos e particularidades dos cães

Os tipos sanguíneos caninos são classificados pelo sistema de antígeno eritrocitário de cães, conhecido como sistema DEA, do inglês “dog erythrocyt antigen”, no qual são reconhecidos 7 fatores (DEA 1.1, DEA 1.2, DEA 3, DEA 4, DEA 5, DEA 6, DEA 7) (ESTEVES et.al., 2011).

A frequência dos tipos sanguíneos pode variar de acordo com a população de indivíduos de uma determinada região. Um exemplo disso é um estudo realizado em Porto Alegre, representado a seguir (Tabela 2).

Tabela de transfusão sanguínea em cães
Tabela 2: Frequências dos tipos sanguíneos do sistema DEA em uma população de cães de raça doadores de sangue em Porto Alegre, RS. Fonte: ESTEVES et.al., 2011.

Um mesmo animal pode apresentar uma combinação de grupos sanguíneos, sendo mais comumente encontrada a DEA 1.1,4 e DEA 1.2,4 (NOVAIS et.al., 2002).

Segundo Kisielewicz e Self (2014), o DEA 1.1 é altamente antigênico, ocasionando mais reações transfusionais, e apresenta uma frequência 42% a 71,2%. Daí a importância em realizar o teste para esse subgrupo no doador e no receptor em casos de transfusões sequenciadas, já que na primotransfusão os cães não apresentam aloanticorpos naturais para DEA 1.1.

A maior parte dos cães apresenta o DEA 4, que é considerado doador universal já que não há relatos da ocorrência de aloanticorpos naturais para esse antígeno. Essa tipagem está muito presente na raça Galgo, porém esses animais geralmente não atingem o peso mínimo esperado para um doador de sangue.

Os Dálmatas previamente sensibilizados possuem uma particularidade que é a presença de aloanticorpos anti-Dal, apresentando risco maior de incompatibilidade com outros cães, resultando em reações hemolíticas, já que o antígeno Dal tem uma frequência de 93% em outras raças (KISIELEWICZ e SELF, 2014).

Tipos sanguíneos e particularidades dos gatos

Os tipos sanguíneos dos gatos são descritos pelo sistema AB e incluem os tipos A, B e AB, sendo o A o mais comum entre os gatos domésticos. Além da particularidade de que não há doador considerado universal, também é importante ressaltar que os felinos nascem com aloanticorpos naturais, o que torna necessária a tipagem antes das transfusões, ficando ainda mais delicada a situação quando submetidos a transfusões consecutivas.

Como para os cães, os tipos sanguíneos dos felinos também podem variar sua prevalência de acordo com a população analisada. Por exemplo, um estudo realizado em Campos de Goytacazes (Tabela 3) não identificou indivíduos do tipo AB em sua amostra de gatos domésticos, o que não conclui que não existam gatos AB no território brasileiro.

Tabela de transfusão sanguínea em gatos
Tabela 3: Frequência dos tipos sanguíneos dos felinos domésticos em Campos de Goytacazes, RJ. Fonte: TEIXEIRA PINTO et.al., 2016.

Gatos tipo B possuem muito mais anticorpos anti-A do que os tipos A possuem anti-B, o que dificulta procedimentos transfusionais em felinos tipo B por apresentarem uma maior probabilidade de ocorrência de reação transfusional hemolítica aguda. Nesse caso, a administração de um volume mínimo de 1ml de sangue leva a manifestações clínicas como: vocalização, defecação, micção, taquicardia e taquipneia, podendo evoluir para hipotensão e morte.

Outra peculiaridade é a isoeritrólise neonatal em filhotes tipo A ou AB nascidos de fêmea tipo B, decorrente da ingestão de aloanticorpos tipo A através do colostro.

Independentemente da tipagem AB, foram descritos antígenos Mik que também podem levar ao desenvolvimento de uma reação hemolítica aguda em gatos receptores que tenham aloanticorpos anti-Mik, mesmo que o paciente receba sangue compatível com seu tipo no sistema AB.

Vale ressaltar que a transfusão de sangue em gatos é paliativa, já que a vida útil dos eritrócitos após a transfusão é de 29 a 39 dias. Daí a importância em diagnosticar e tratar a enfermidade responsável pelos quadros anêmicos/hemorrágicos.

Demais pontos de atenção no procedimento de transfusão sanguínea em cães e gatos

Os cuidados com a transfusão sanguínea em cães e gatos devem se iniciar com a triagem de um doador hígido, passando pela coleta e armazenamento adequados, além do manuseio cuidadoso das bolsas de sangue evitando, assim, sua contaminação.

O ideal é sempre realizar a tipagem sanguínea ou testes de compatibilidade com o intuito de prevenir a ocorrência das reações transfusionais. Além disso, o médico-veterinário deve ter domínio sobre as intercorrências e saber como solucioná-las.

Embalagem do alimento Recovery da Royal Canin

Outro ponto importante é o manejo nutricional do paciente que recebeu a transfusão, garantindo o aporte energético adequado para ajudar no restabelecimento das funções do organismo, uma vez que se encontra altamente debilitado. Uma solução de alimento hipercalórico com excelente nível proteico para animais internados em recuperação é a Recovery, que também é altamente palatável e cuja textura facilita a administração via seringas ou sondas, quando necessário.

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Referências bibliográficas

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