Pioderma canino: o problema da resistência à meticilina

Pioderma canino: o problema da resistência à meticilina

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Antes do surgimento da resistência à meticilina, a bactéria Staphylococcus pseudintermedius era suscetível à maioria dos medicamentos antibióticos disponíveis para animais. Mais recentemente, a bactéria adquiriu material genético e desenvolveu resistência à meticilina. Na verdade, houve o surgimento de um padrão de resistência em  inúmeros  cães, limitando as opções de tratamento e enfatizando a necessidade do uso responsável de antibióticos. Este trabalho traça um panorama do nosso atual estado de conhecimento sobre o Staphylococcus pseudintermedius resistente à meticilina (MRSP) como um patógeno causador de pioderma canino e considera o diagnóstico da doença, opções de tratamento, prevenção e aspectos  zoonóticos.

S. pseudintermedius – um patógeno?

As bactérias do gênero estafilococo são comensais normais da pele e da mucosa de cães saudáveis, mas são também patógenos oportunistas. A apresentação clínica mais frequente de infecções por estafilococos caninos é o pioderma, seguido pela otite externa.

O MRSP é um desafio?

Historicamente, o pioderma foi tratado empiricamente com beta-lactâmicos, macrolídios ou antibióticos com sulfonamida potencializada. O problema com o MRSP não é somente a resistência ao betalactâmico, mas também a resistência a antibióticos como a clindamicina, eritromicina, fluoroquinolonas, gentamicina e tetraciclina. O fenótipo multirresistente é associado a mudanças genéticas devidas a elementos móveis transponíveis, que codificam a resistência ao antibiótico. O S. pseudintermedius com resistência a três ou mais classes de antibióticos é classificado como um estafilococo resistente a múltiplos medicamentos e, portanto, não é aconselhável empiricamente substituir uma classe de antibiótico por outra se o tratamento falhar com o antimicrobiano de primeira linha. Três casos devem ser cultivados e ter sua sensibilidade testada antes de um segundo antibiótico ser receitado. Não é possível diferenciar entre as cepas de S. pseudintermedius suscetíveis e resistentes com base no quadro clínico, já que o MRSP não é mais virulento quando comparado ao S. pseudintermedius suscetível à meticilina (MSSP).

Como o pioderma é  diagnosticado?

É possível diagnosticar um pioderma com base no histórico anterior e nos sinais clínicos. Entre os exames de diagnóstico mínimos estão a citologia, cultura bacteriana e teste de sensibilidade a antibiótico. O diagnóstico diferencial inclui demodicose e dermatofitose e, mais raramente, doenças pustulares estéreis. Outros procedimentos de diagnóstico, como raspagens de pele, cultura de dermatófitos e histopatologia, devem ser aplicados caso a caso.

A forma mais comum de pioderma canino superficial é a foliculite bacteriana. As lesões características incluem pústulas pequenas e pápulas eritematosas, associadas aos folículos capilares. Frequentemente são observados colarete epidérmico e lesões em alvo, ao passo que também é possível encontrar crostas, alopecia, eritema e hiperpigmentação. Em raças de pelagem curta, a apresentação clínica pode ser caracterizada por áreas circulares multifocais de alopecia (dando uma aparência de“mordida de traça”). Entre os sinais de pioderma profundo estão bolhas hemorrágicas, seios drenantes, úlceras, edema e inflamação severa. Uma descarga hemorrágica e/ou purulenta pode ser observada, com dor associada. É fundamental distinguir entre a foliculite bacteriana e o pioderma profundo. Este é mais penetrante, com ruptura do folículo capilar e envolvimento da derme e subcútis, e, por- tanto, requer um tratamento de duração mais longa(13).

A cultura e o exame de sensibilidade podem ser feitos para qualquer caso, mas são bastante recomendados para as seguintes situações:

  • Se os sinais clínicos e os resultados citológicos não forem consistentes entre si, p.ex.: se não forem vistos microorganismos com citologia, mas os sinais clínicos continuarem sugerindo pioderma.
  • Se bactérias em forma de bastonetes forem observadas  na citologia, já que a suscetibilidade a antibiótico para os bacilos é de difícil predição.
  • Para qualquer caso de pioderma profundo, já que ele requer um tratamento mais longo.
  • Qualquer infecção que coloque a vida do animal em risco.
  • Se houver suspeita de infecção por  MRSP.

Quando deve haver suspeita de infecção por MRSP?

Deve-se suspeitar da presença de MRSP se um ou mais fatores de risco (Tabela 1) forem reconhecidos. Os clínicos devem saber que as infecções por MSSP, confirmadas por cultura, podem se transformar em infecções por MRSP durante o tratamento com antibiótico. Isso pode ocorrer tanto pela transmissão dos fatores genéticos, ou porque, embora diversos clones tanto de MSSP como de MRSP estejam presentes no paciente, somente o MSSP  foi cultivado na primeira tentativa.

Fatores de risco associoados ao MRSP

  • Surgimento de novas lesões depois de duas a três semanas de terapia com antibiótico;
  • Resposta Clínica insatisfatória à terapia empírica;
  • Pioderma bacteriano recorrente ou em relapso;
  • O paciente teve uma infecção por MRSP anterior;
  • O paciente vive com um cão infectado por MRSP;
  • Uso recente de antibiótico;
  • Internação recente.

Como o pioderma S. pseudintermedius é tratado?

Geralmente, é adotada terapia sistêmica para o tratamento de pioderma canino superficial e profundo. Antes de iniciar a terapia com antibiótico, é importante determinar se o pioderma canino é profundo, severo e/ou generalizado suficiente para exigir antibióticos sistêmicos. O tratamento de MRSP e MSSP segue os mesmos princípios básicos, com o reconhecimento do patógeno e do padrão de suscetibilidade. Todos os fatores do paciente, como a causa subjacente, imunossupressão e doença concomitante, precisam ser abordados. A adesão do dono e a disponibilidade, custo e efeitos colaterais do medicamento também devem ser considerados. Alguns medicamentos podem não ser licenciados para uso animal em certos paí- ses e, se for proposto um uso extrabula (ou seja, para uma indicação não incluída na bula), o clínico deve primeiramente discutir as implicações com o dono.

Uma revisão sistemática recente identificou boas evidências de alta eficácia de cefovecina injetada por via subcutânea em pioderma superficial, e de amoxicilina clavulanato administrada por via oral em pioderma profundo. Um nível satisfatório de evidências foi identificado para eficá- cia de moderada a alta de amoxicilina clavulanato, clinda- micina, cefadroxil, trimetoprima sulfametoxazol e ormetoprima associada à sulfadimetoxina administrados por via oral em pioderma superficial, e de pradofloxacina oral, cefadroxil oral e cefovecina injetada por via subcutânea em pioderma profundo. Uma publicação recente apresentou diretrizes para o diagnóstico e tratamento de foliculite bacteriana superficial canina.

Como o MRSP deve ser tratado?

As opções de antibióticos sistêmicos para MRSP ou estafilococos resistentes a múltiplos medicamentos são mais limitadas. Recomenda-se a seleção dos medicamentos adequados depois de cultura e teste de suscetibilidade, e quando não houver alternativas. Ao escolher um plano de tratamento, é importante considerar que há um risco de desenvolvimento de maior resistência à cepa infecciosa. Outra consideração é que o MRSP somente pode ser tratado com terapia tópica diligente. Os medicamentos disponíveis para MRSP são as tetraciclinas (p.ex.: doxiciclina e minociclina), fluoroquinolonas (p.ex., enrofloxacina, marbofloxacina, orbifloxacina, pradofloxacina e ciprofloxacina), cloranfenicol, rifampicina e aminoglicósidos (p.ex.: gentamicina e amicacina). O uso de medicamentos como a linezolida, teicoplanina ou vancomicina é fortemente desaconselhável, independentemente da suscetibilidade, já que esses medicamentos são reservados para o trata mento de infecções graves por MRSA em humanos.

Alguns dos medicamentos utilizados para MRSP têm potencialmente grave efeitos colaterais. O cloranfenicol é um antibiótico bacteriostático que deve ser manipulado com luvas, devido à possível anemia aplástica irreversível em humanos. Os efeitos colaterais incluem vômito, toxici- dade hepática e supressão (reversível) de medula óssea. Mais  recentemente,  também  foi  relatada  fraqueza  no membro traseiro. Os aminoglicosídeos podem provocar nefrotoxicidade ou ototoxidade, e recomenda-se evitá-los em animais com insuficiência renal. Recomenda-se o monitoramento de disfunção renal para prevenir insufici- ência renal aguda induzida por aminoglicosídeos**. A rifam- picina pode causar hepatoxicidade e exige o monitora – mento da função hepática antes do início da terapia e, depois, a intervalos semanais durante o tratamento. Outros efeitos colaterais incluem anemia, trombocitopenia, anorexia, vômito, diarreia e coloração laranja dos fluidos corporais. Foi relatado para S. aureus que é possível evitar resistência à rifampicina por associação com certos antibióticos, como a clindamicina e a cefalexina. Não se sabe se isso ocorre com o MRSP, já que o desenvolvimento de resistência foi relatado mesmo com associação com outros antibióticos.

**De acordo com as diretrizes da Sociedade Internacional de Interesse Renal (International Renal Interest Society – IRIS) (www.iris-kidney.com).

 

Terapia tópica – ela ajuda?

O tratamento tópico do pioderma acelera a recuperação e/ou reduz a necessidade de terapia sistêmica. Em alguns casos, os agentes tópicos podem ser o único tratamento necessário, ou podem ser adjuntivos a antibióticos sistêmicos. Os produtos tópicos podem ser divididos em produtos antimicrobianos e antibióticos tópicos. Ambos podem ser usados para lesões generalizadas ou localizadas.

Entre os antibactericidas tópicos estão a clorexidina, peróxido  de  benzoíla,  lactato  de  etilo  e  produtos  à  base de hipoclorito de sódio. Há relato de que uma concentração de 2 a 4% de clorexidina foi eficaz como terapia única, e o xampu de clorexidina se revelou mais eficaz em comparação com o xampu de peróxido de benzoíla. Esses pro- dutos podem ser usados na forma de xampus, condiciona- dores, sprays, lenços ou diluídos na água do banho. Não foi relatada resistência à biocida para a clorexidina em MRSP. Para lesões localizadas, as alternativas antibacterici- das tópicas incluem as pomadas à base de mel, que têm  um efeito contra MSSP e MRSP. A nisina é um antimi- crobiano peptídeo, disponível em formato de lenço, para tratar pioderma localizado e colonização bacteriana superficial.

Quando necessário, antibióticos tópicos podem ser utiliza- dos para lesões focais. Eles incluem o ácido fusídico, sulfa- diazina de prata, gentamicina, fluoroquinolonas e mupiro- cina, e podem ser úteis mesmo quando é relatada resistência pelo laboratório. O ácido fusídico é um antibió- tico dependente de concentração, que permite atingir altas concentrações localmente, e pode ser uma opção eficaz para MRSP mesmo quando testes in vitro revelam não suscetibilidade. A mupirocina é utilizada para infecção nasal tópica e descolonização de MRSA em humanos, mas alguns países restringem seu uso em animais.

Quais as implicações zoonóticas do MRSP?

Com o surgimento do MRSP, renovou-se o interesse pelas implicações zoonóticas do S. pseudintermedius. Foi demonstrado que é possível ocorrer colonização nasal em humanos, e donos com cães afetados por pioderma profundo podem portar a mesma cepa genética de MRSP presentes nos seus animais, o que embasa a transmissão interespécies. Veterinários em contato com animais infectados também parecem ter um risco maior de cultura nasal positiva de MRSP quando compartilham o mesmo ambiente. Os humanos não são os hospedeiros  naturais do S. pseudintermedius, o que explica o menor impacto de MRSP em comparação com MRSA, mas não se sabe se cepas de S. pseudintermedius contendo elementos genéticos móveis podem representar uma reserva para a disseminação de genes resistentes à  flora  cutânea comensal de humanos.

Quais conclusões podem ser tiradas?

Clínicos que tratam pequenos animais geralmente encontram cães com pioderma bacteriano, sendo que a maioria dos casos de primeira ocorrência pode ser tratada empiricamente. Contudo, deve-se suspeitar de infecção por MRSP se houver uma resposta insatisfatória à terapia com antibiótico anterior, ou quando outros fatores de risco estiverem presentes. É necessário realizar cultura e teste de sensibilidade a antibiótico, já que o MRSP oferece opções limitadas de antibióticos sistêmicos. O tratamento tópico é aconselhado como terapia única ou adjuvante à antibiose sistêmica para acelerar a recuperação. O MRSP tem implicações zoonóticas e os clínicos devem implementar protocolosparaevitar a  disseminação deste patógeno.

 

Referência bibliográfica:

Artigo Drª Ana Oliveira para Vet Focus. Acesse aqui