Distúrbios digestivos em cães funcionais e atléticos

Distúrbios digestivos em cães funcionais e atléticos

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LAURENCE YAGUIYAN-COLLIARD, DVM (médica-veterinária), PhD, HDR
        National Veterinary School of Alfort (ENVA, Escola Veterinária Nacional de Alfort), França

DOMINIQUE GRANDJEAN, DVM (médico-veterinário), PhD, HDR
       National Veterinary School of Alfort (ENVA, Escola Veterinária Nacional de Alfort), França

Introução

Os cães são amplamente utilizados pelo homem tanto para fins esportivos (p. ex., corridas de trenó, agility [agilidade], esqui) como para atividades voltadas ao trabalho (cães-guia, busca e resgate, postos policiais, etc.). Do ponto de vista comportamental e nutricional, o tratamento desses animais é algo único e peculiar, pois depende do tipo de trabalho realizado (provas de resistência ou velocidade), de sua intensidade e das condições ambientais sob as quais os cães são mantidos e empregados. Tal como acontece com o homem e os equinos, o estresse exerce um grande impacto sobre o bem-estar de um cão e, particularmente, pode ter uma enorme influência sobre a saúde e o desempenho dos cães funcionais e atléticos, sobretudo na função gastrintestinal (GI). Além de serem muito comuns nesses animais, os sinais de vômito, úlceras gástricas e diarreia afetam o desempenho deles, podendo até mesmo ser fatais. Distúrbios GI afetam seres humanos e animais atletas igualmente (cavalos e cães), mas a patogênese dessas doenças ainda é pouco compreendida; por isso, inúmeros parâmetros devem ser levados em conta ao se considerar as medidas preventivas.

Consequências do esporço físico sobre o trato GI

Os três distúrbios GI mais comuns são vômito, úlceras gástricas e diarreia. Essas manifestações clínicas resultam em perdas de água, nutrientes e eletrólitos. Isso diminui o desempenho e pode até ser fatal.

A ocorrência de vômito durante o esforço físico pode causar asfixia ou doença brônquica grave por aspiração desse vômito. Em todos os casos, o vômito provoca perda de água e eletrólitos e até perda de sangue se a mucosa gástrica estiver ulcerada. O vômito em cães de trabalho pode ter múltiplas origens, sejam elas psicológicas ou metabólicas. A presença de alimento no estômago durante o esforço físico também é um fator de risco. No entanto, doença inflamatória gástrica é a causa mais comum de vômito.

O exame endoscópico de cães de trenó após corridas de longa distância revelou lesões gástricas visíveis em 50-70% dos cães, algumas vezes somente após 1 dia de corrida. Embora dietas ricas em gordura ou sensibilidades individuais tenham sido incriminadas, as lesões parecem ser uma consequência direta do esforço físico, o que é particularmente intenso e prolongado nesse tipo de corrida. Esse fenômeno também é observado em seres humanos atletas e cavalos de corrida.

Sabe-se que a hipertermia prolongada que acompanha o esforço físico aumenta a permeabilidade intestinal, desde o estômago até a porção distal do intestino grosso. Essa permeabilidade aumentada pode significar que a mucosa gástrica talvez reaja à acidez estomacal, provocando inflamação, erosão e ulceração. Isso também pode explicar, pelo menos em parte, a incidência de diarreia em cães funcionais e atléticos.

Embora a diarreia raramente seja um motivo para aposentar um cão ou afastá-lo de uma corrida, trata-se de um sinal comum em cães de trenó e, provavelmente, diminui o desempenho do animal.

Além de problemas parasitários e infecciosos, a dieta pode ser uma fonte de distúrbios GI. Especialmente para os cães que trabalham em condições extremas e por períodos prolongados (p. ex., cães de trenó, cães de busca e resgate), é imprescindível uma dieta de altíssima qualidade para fornecer a energia necessária. Por exemplo, a necessidade energética de manutenção (NEM) para um Husky siberiano de 25 kg em uma região de clima temperado gira em torno de 1.200 kcal de energia metabolizável (EM)/dia, enquanto um cão da mesma raça que participa da corrida de trenó de Yukon Quest de 1.600 km a uma temperatura ambiente entre – 20 e – 50°C necessitará de mais de 9.500 kcal de EM/dia. Para suprir essas necessidades e garantir um aporte energético suficiente às células durante o esforço prolongado, as porções alimentares para os cães de trenó são particularmente ricas em lipídeos.

Esse conteúdo rico em gordura significa que as capacidades digestivas do cão podem ser excedidas, resultando em má-digestão e má-absorção. As partículas não digeridas são fermentadas ou putrefeitas pelas bactérias colônicas. Além de desequilibrar a flora bacteriana normalmente, esses produtos de degradação provocam inflamação da mucosa intestinal e geram um efeito osmótico indutor de liquefação das fezes. O envolvimento de microrganismos GI patogênicos, como Clostridium e Salmonella, por si só, não explica a prevalência de diarreia em cães de trenó.

 

Conclusão

O emprego do cão para fins esportivos ou no trabalho, tal como acontece com os atletas humanos, impõe restrições ou limitações psicológicas e físicas às quais o animal precisa superar. Evidentemente, a capacidade de responder ao estresse e superá-lo dependerá da constituição genética do animal e de seu nível de adestramento/treinamento. Contudo, fatores como condições de vida, cuidados de saúde preventivos e dieta, além do aquecimento antes do exercício e da recuperação após essa atividade, precisam ser otimizados pelo médico-veterinário e por outros profissionais que cuidam dos cães de trabalho, para garantir que estes alcancem e conservem o melhor estado de saúde possível.

 

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