A esterilização felina

A esterilização felina

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A esterilização é um procedimento cirúrgico rotineiramente utilizado para evitar a reprodução de modo definitivo em animais de estimação. A esterilização é recomendada para gatos não apenas pelos vários benefícios diretos aos animais, mas também pelos benefícios aos proprietários e à sociedade, embora benéfica, vários estudos sugerem a ocorrência de alterações importantes no organismo do animal após a esterilização, para as quais os proprietários devem ser alertados pelo Médico-Veterinário (fig.1).

BENEFÍCIOS DA ESTERILIZAÇÃO POSSÍVEIS ALTERAÇÕES CAUSADAS PELA ESTERILIZAÇÃO
Evita a prenhez indesejada e o abandono de animais;
Reduz os passeios externos;
Auxilia no controle de contágio por doenças infecciosas,
afecções do sistema reprodutivo, acidentes,
traumatismos e intoxicações;
Aumenta a expectativa de vida do gato
Redução da taxa metabólica basal;
Redução da atividade física;
Redução das necessidades energéticas;
Aumento da ingestão de alimentos;
Aumento do risco de obesidade;
Aumento da probabilidade de formação de cálculos
urinários de estruvita e oxalato de cálcio;
Aumento na concentração de glicose e lipídeos
sanguíneos;
Resistência à insulina.

Figura 1: Benefícios e possíveis alterações causadas pela esterilização em felinos.

Alguns autores citam que estas alterações podem estar relacionadas à interrupção da circulação de hormônios gonadais. O estrógeno, hormônio produzido pelas gônadas femininas, possui receptores no hipotálamo e interage com a leptina, aumentando sua atividade. A leptina, por sua vez, é responsável pelo controle da ingestão alimentar e a interação entre a leptina e o estrógeno possui papel na regulação do apetite, além disso, o estrógeno é associado ao aumento da atividade física voluntária. Portanto, a esterilização e a redução de estrógeno circulante podem estar relacionadas com falhas na regulação do apetite e no decréscimo da atividade física (Belsito et al, 2009). Particularmente na espécie felina, gatos machos esterilizados sofrem de modo mais pronunciado à perda de capacidade de regular o apetite do que as fêmeas. Nos machos, paradoxalmente, essa alteração pode não ser mediada pela interrupção da circulação de testosterona, mas sim regulada por estrógenos produzidos pelas glândulas androgênicas em quantidades inferiores à produção de estrógeno pelos ovários nas fêmeas, por atividade de aromatases teciduais (Kanuck et al, 2003).

Esterilização e obesidade
Gatos esterilizados são 3,4 vezes mais propensos à obesidade, principalmente entre 4 e 10 anos de idade (Scarlett et al, 1994). Os mecanismos que contribuem para o ganho de peso após a esterilização em gatos ainda não foram completamente elucidados. Alguns estudos demonstraram que a esterilização causa mudanças na taxa metabólica, na atividade física e no padrão de alimentação, levando ao ganho de peso.

Root et al (1996) mensuraram, por calorimetria indireta, a taxa metabólica de gatos esterilizados e gatos sexualmente intactos (não esterilizados). Esses autores observaram uma produção de calor (medida da taxa metabólica) 28% maior para machos intactos e 33% para fêmeas intactas, comparados aos seus equivalentes esterilizados. Esses resultados sugerem que gatos machos esterilizados requerem ingestão calórica 28% menor do que gatos intactos e fêmeas esterilizadas 33% menor do que gatas esterilizadas.

Fettman et al (1997) observaram redução de tiroxina (T4) e da taxa metabólica basal em fêmeas esterilizadas, mas não em machos, três meses após a esterilização. Os gatos dessa pesquisa foram alimentados em regime ad libitum (à vontade) e todos os grupos apresentaram ganho de peso e de tecido adiposo, porém, isto foi mais evidenciado nos grupos de animais esterilizados, com maior proporção de ganho de peso na forma de gordura quando comparados aos grupos de animais inteiros. Os autores relacionaram essas observações ao aumento do consumo de alimentos, mas consideraram que a redução da taxa metabólica observada nas fêmeas esterilizadas possivelmente contribuiu para o ganho de peso, e que, apesar de não monitorado nessa pesquisa, o nível de atividade voluntária não pode ser descartado como fator contribuinte.

Belsito et al (2008) estudaram o impacto da esterilização e da ingestão de alimentos na composição corporal, atividade física, parâmetros bioquímicos e em genes associados ao metabolismo lipídico e à inflamação em tecidos adiposo e muscular esquelético em gatas. O estudo durou 24 semanas, sendo que nas primeiras 12 semanas os animais foram alimentados com quantidade controlada para manutenção do peso corporal, e nas 12 semanas conseguintes foram alimentados em regime ad libitum. Para manter a condição corporal ideal após a esterilização, a ingestão de alimentos precisou ser reduzida em 30,6%. As mudanças significativas no período em que a alimentação foi fornecida à vontade (12 a 24 semanas) foram: o aumento do consumo voluntário de alimentos (40,5%), do peso corporal, da gordura corporal, e do conteúdo mineral ósseo (para suportar o ganho de peso corporal); e a, redução no percentual de massa magra. Além disso foram observadas alterações em parâmetros bioquímicos (aumento da glicose, triacilgliceróis e tendência ao aumento da leptina) e na expressão genética de genes associados com metabolismo lipídico e inflamação (decréscimo de LPL, HSL e adiponectina mRNA, aumento de IL-6 mRNA), que foram associadas à interrupção da circulação de estrogéno e à mudança do padrão alimentar (ad libitum). A restrição de alimentos (0 a 12 semanas) também alterou alguns parâmetros estudados, porém positivamente, e manteve os metabólitos sanguíneos e a condição corporal inalterados, fundamentando a importância da intervenção nutricional pós-esterilização com o objetivo de prevenir a obesidade e desordens relacionadas. A atividade física sofreu significativa redução total, de aproximadamente 52%, (destes, a redução em 60% da atividade diurna e em 33% de atividade noturna). Nas primeiras 12 semanas, quando a alimentação foi controlada, a atividade diurna permaneceu inalterada, mas a atividade noturna decresceu dramaticamente, em aproximadamente 20%. Já no período de alimentação ad libitum, a atividade física total sofreu redução, porém com maior impacto da atividade diurna.

Kanchuck et al (2003) observaram aumento significativo do consumo voluntário de alimentos em gatos machos esterilizados, comparados aos gatos intactos, além de um peso corporal aproximadamente 30% maior 36 semanas após esterilização, como resultado de acréscimo de tecido adiposo. Como esses autores não observaram redução da taxa metabólica basal, o ganho de peso foi relacionado ao aumento do consumo de alimentos, evidenciado precocemente nesse estudo, já a partir de apenas dois dias após a esterilização. Entretanto, o gasto energético basal foi realizado através do isótopo de deutério e o gasto energético foi expresso com base na massa magra, o que pode explicar os resultados diferentes dos encontrados na literatura (redução de 20 a 25% na taxa metabólica basal após a esterilização), que foram obtidos por outros métodos.

Consequências da obesidade
A obesidade está no centro das possíveis alterações que podem surgir após a esterilização dos felinos, uma vez que a obesidade está associada à ocorrência de diversas doenças. Em estudo retrospectivo com 1457 gatos, Scarlett et al (1998) verificaram que comparados aos gatos com peso corporal ótimo, gatos obesos são 4,9 vezes mais propensos à claudicação, 3,9 vezes mais propensos à desenvolver diabetes mellitus e 2,3 vezes mais propensos a desenvolver doenças dermatológicas  não alérgicas. Vários outros riscos à saúde são citados para felinos na literatura, decorrentes da obesidade, dos quais merecem destaque as doenças do trato urinário inferior, incluindo urolitíases, lipidose hepática e redução da expectativa de vida.

As causas dessa íntima relação com a obesidade são variadas, mas sabe-se que envolvem a liberação de citocinas pró-inflamatórias e hormônios pelo tecido adiposo (adipocinas), bem como relaciona-se ao aumento do estresse oxidativo.

Esterilização e urolitíases
Gatos esterilizados são 7 vezes mais propensos à formação de urólitos de oxalato de cálcio e 3,5 vezes mais propensos a desenvolver urólitos de estruvita, quando comparados aos gatos sexualmente intactos (Lekcharoensuk et al, 2000).

Esterilização e diabetes
O hormônio insulina é secretado pelas células B pancreáticas, e controla a absorção e utilização de glicose em tecidos periféricos. Gatos esterilizados são mais propensos a desenvolver diabetes mellitus tipo 2 (Panciera, 1990; Prahl, 2007).

A obesidade é o principal fator de risco para o diabetes felino (Nelson et al, 1990), que está relacionado à redução da sensibilidade à insulina (Feldhahn et al, 1999).

Entretanto, a possibilidade da esterilização causar a resistênciainsulínica por outros mecanismos não pode ser descartada.

Diferenças entre machos e fêmeas
Alguns estudos demonstram que gatos machos esterilizados sofrem de modo mais pronunciado à perda de capacidade de regular o apetite e consequentemente apresentam maior risco ao ganho de peso e ao acúmulo de gorduras corporais após a esterilização. Em estudo retrospectivo com 8159 gatos, Lund et al (2005) relataram que, de todos os grupos de gatos estudados (machos e fêmeas esterilizados e intactos), os gatos machos esterilizados apresentaram maior prevalência de sobrepeso (33,3%) e obesidade (7%), enquanto as fêmeas intactas representaram o grupo com a menor prevalência.

Gatos esterilizados, especialmente os machos, são mais propensos a desenvolver diabetes mellitus (Panciera, 1990; Prahl, 2007). Embora isto possa ser explicado por uma possível diferença de ganho de peso e tecido adiposo de acordo com o sexo, levando à redução da sensibilidade à insulina (Feldhahn et al, 1999), a possibilidade de ocorrência de alterações hormonais distintas não devem ser excluídas.

Palm & Westropp (2011) citaram em revisão de literatura que gatos machos apresentam mais urólitos por oxalato de cálcio, quando comparados às fêmeas. E, devido às características anatômicas (uretra mais longa e estreita), os machos são mais acometidos por obstruções urinárias do que as fêmeas.

Intervenções nutricionais para gatos esterilizados
Frente a todas as possíveis alterações que podem ocorrer após a esterilização felina, em especial a obesidade, é prudente adotar um alimento especialmente formulado para gatos esterilizados e um manejo alimentar adequado.

De um modo geral, alimentos para gatos esterilizados devem apresentar:

– Baixa energia: a redução das calorias do alimento consiste na estratégia primária para a manutenção da condição corporal ideal. Uma vez que os gatos machos esterilizados apresentam maior predisposição à obesidade, um alimento especialmente formulado, com menor aporte energético do que um alimento para fêmeas pode ser interessante. A literatura sugere restrições energéticas de 20 a 30%. Harper et al (2001) trabalharam com 55,5 kcal/kg/dia para manutenção da condição corporal ideal em gatos esterilizados, mas verificaram que para alguns gatos é necessário utilizar somente 40 kcal/kg/dia.

– Alta proteína: entre os nutrientes que fornecem energia, a proteína fornece a menor quantidade em energia líquida (fração realmente aproveitada pelo metabolismo celular). Além disso, as proteínas colaboram com o controle glicêmico, saciedade e preservam a massa muscular magra (Laflamme & Hannah, 2005). Outra estratégia interessante é aumentar a proporção de calorias provenientes da proteína para machos esterilizados devido à sua maior propensão ao ganho de peso.

– Alta Fibra: o maior aporte de fibras dietéticas contribui para a “diluição” da energia e estimula os mecanismos mecânicos da saciedade de gatos glutões (vulgo gulosos). Fontes de fibras com capacidade higroscópica (afinidade por água), como a semente de psyllium e alguns tipos de celulose, promovem maior saciedade induzida pela água absorvida. Porém, é importante ressaltar que as fibras também afetam o aproveitamento de nutrientes, por reduzirem a digestibilidade de todas as frações dietéticas. Portanto, não basta acrescentar fibras à dieta dos animais. Os alimentos com alta fibra devem conter teores elevados de nutrientes essenciais, incluindo os micronutrientes, a fim de se evitar deficiências.

– L-carnitina: trata-se de um composto derivado dos aminoácidos lisina e metionina, mas que também pode ser acrescentado diretamente aos alimentos, com o objetivo de melhorar o transporte de ácidos graxos de cadeia longa através da membrana mitocondrial e consequentemente otimizar sua oxidação e produção de energia (ATP). Sunvold et al (1998) demonstraram a eficácia da L-carnitina na perda de peso e gordura corporal em cães quando fornecida em doses de 50-100 mg/kg. Não há dados publicados sobre gatos, mas acredita-se que as doses eficazes sejam semelhantes (figura 2).

– Redução do RSS para oxalato de cálcio e estruvita através de:
1. promoção da ingestão de água, que pode ser obtida através do fornecimento de alimentos com alto teor de umidade ou através do incremento do teor de sódio na dieta a fim de estimular o consumo voluntário de água (principal fator preventivo), promover a diurese, a queda da saturação e diluição de macroelementos na urina;
2. seleção de ingredientes que não sejam ricos nos íons que compõem os urólitos (estruvita: Mg++, PO43- e NH4+; oxalato de cálcio: Ca2+ , C2O42-) e em substâncias promotoras é o segundo fator mais importante na prevenção das litíases. Nesse contexto, a substituição da polpa de beterraba por polpa de chicória é uma medida eficaz para animais que têm maior predisposição ao desenvolvimento de Oxalato de Cálcio, como gatos machos e animais idosos;
3. manipulação no pH urinário através da dieta a fim de produzir pH urinário inferior a 6,5 como medida preventiva à formação de cálculos de estruvita. O RSS para cálculos de Oxalato de Cálcio não apresenta forte correlação com o pH urinário, especialmente perante a diluição urinária que suplanta o efeito do pH, motivo pelo qual não é necessário, tão pouco eficaz, fornecer alimento alcalinizante para a prevenção e tratamento desse tipo de urólito.
(consultar maiores detalhes em Vets Today 17 – “Esterilização felina e urolitíases: abordagem com foco no RSS”)

– Alimentos úmidos: a água não contém calorias. Alimentos úmidos podem ser usados para reduzir a ingestão diária de energia e contribuir com a saciedade. Ao mesmo tempo, consiste uma medida mais eficaz para reduzir o RSS para todos os tipos de urólitos, por mecanismos já citados.

– Manejo alimentar: a adoção de apropriado manejo alimentar (e hídrico!) é também muito importante. Qualquer alimento fornecido ad libitum é capaz de provocar mudanças no peso e composição corporal. Por outro lado, empregar um alimento inadequado à condição do animal (gatos esterilizados) em restrições inadequadas, mesmo os bem formulados e de boa qualidade, pode provocar deficiências nutricionais específicas.

Figura 2: Ação da L-carnitina no transporte de AGCL através da membrana mitocondrial

Considerações finais
É importante ter em mente e conscientizar os proprietários que os benefícios da esterilização superam a possibilidade de ocorrênciade alterações, pois estas podem ser evitadas a partir de cuidados e nutrição adequada. Neste contexto, o papel do médico-veterinário na orientação dos proprietários e avaliação rotineira dos pacientes é essencial para auxilar a preservar a saúde e o bem-estar dos gatos esterilizados!