Biomarcadores para o diagnóstico precoce de doença renal crônica felina

Biomarcadores para o diagnóstico precoce de doença renal crônica felina

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  INTRODUÇÃO

A doença renal crônica é altamente prevalente em gatos e sua incidência aumenta com o avanço da idade, acometendo mais de 30% dos gatos com >15 anos1. Tal doença pode ser uma causa significativa de morbidade e mortalidade. Em um estudo em gatos com doença renal crônica, em que nenhuma tentativa terapêutica foi feita para controlar a condição, foi relatado um tempo mediano de sobrevida de apenas 233 dias2. O diagnóstico de rotina de doença renal crônica felina é definido com base na:

A.   Obtenção do histórico do paciente;

B.  Realização do exame clínico;

C.  Determinação dos níveis de ureia e creatinina no soro ou plasma;

D.  Medição da densidade urinária;

E.  Quantificação da proteinúria.

Segundo relatos, é necessária a perda da função de pelo menos 75% dos néfrons para o aparecimento da azotemia, embora muitos gatos não demonstrem sinais clínicos evidentes de doença renal crônica mesmo quando a azotemia já se desenvolveu. O diagnóstico precoce de doença renal crônica permite a instituição imediata de estratégias terapêuticas pelo clínico, como a administração de dieta renal, o qual tem demonstrado melhorar o tempo de sobrevida em pacientes azotêmicos3, 4. A capacidade de identificar os gatos nos estágios precoces (iniciais) da doença renal crônica permite que os clínicos monitorem esses casos mais de perto e detectem a azotemia assim que ela surgir. Isso também pode facilitar a intervenção precoce para tratar a causa subjacente da doença renal crônica caso se consiga identificá-la.
A doença renal crônica pode ser o resultado de enfermidades inflamatórias, infecciosas, neoplásicas ou genéticas. Contudo, na maioria dos casos, a doença renal crônica felina origina-se de nefrite tubulointersticial crônica de causa desconhecida, caracterizada por dilatação e atrofia tubular, além de inflamação e fibrose intersticial5. Independentemente da etiologia subjacente, a perda de néfrons resulta em um declínio na TFG, o que acaba levando à incapacidade de concentração urinária e ao desenvolvimento de azotemia.
As ferramentas diagnósticas não invasivas (ou seja, aquelas que não recorrem à biopsia dos rins) para a detecção de doença renal crônica em seus estágios mais precoces (iniciais) são cada vez mais exigidas, sendo uma área ativa de pesquisa. As técnicas disponíveis atualmente e aquelas sob investigação se concentram na estimativa ou medição da TFG e na identificação de marcadores de dano ou lesão renal. Os biomarcadores podem ser mensurados e avaliados de forma objetiva como indicadores de processos biológicos normais, processos patológicos ou respostas farmacológicas a alguma intervenção terapêutica6. O presente artigo abordará os biomarcadores já investigados e aqueles em processo de investigação para facilitar o diagnóstico precoce de doença renal crônica felina, além de revisar as recomendações atuais para os médicos-veterinários que fazem uso dos biomarcadores em seu exercício profissional. Embora as técnicas de medição da TFG estejam fora do escopo deste artigo, existem outras referências a respeito desse assunto7.
MARCADORES ENDÓGENOS DA TAXA DE FILTRAÇÃO GLOMERULAR (TFG)
A ferramenta mais útil para identificar e classificar a doença renal crônica em seus diferentes estágios é a medição da TFG. Em seres humanos, emprega-se uma fórmula de TFG estimada com certa rotina para essa finalidade. Essa fórmula leva em conta a concentração de creatinina plasmática e uma série de outros fatores, como idade, sexo e raça. Apesar dos inúmeros marcadores e dos métodos de amostragem estudados atualmente para medir a TFG no gato, não há um consenso atual quanto ao protocolo ideal a seguir e também não existe nenhuma fórmula disponível de TFG estimada específica para os felinos. Em consequência disso, o sistema de estadiamento proposto pela IRIS utiliza a medição da creatinina sérica como marcador substituto e indireto da TFG em medicina veterinária.
BIOMARCADORES URINÁRIOS
A urina é um líquido corporal facilmente obtido que pode ser de grande utilidade para avaliar um paciente com suspeita de doença renal. Como a maioria dos casos de doença renal crônica felina se deve à nefrite tubulointersticial, os biomarcadores mais úteis para a identificação precoce de doença renal crônica nessa espécie são aqueles que indicam dano ou disfunção tubular.
A densidade urinária também fornece informações sobre a função tubular, sendo facilmente mensurada na clínica com o uso de um refratômetro. Uma densidade urinária ≥1,035 em gato sugere que os rins apresentam uma capacidade adequada de concentração da urina. Em um estudo, observou-se que os gatos que desenvolvem azotemia dentro de 12 meses têm uma densidade urinária significativamente menor do que aqueles que permanecem não azotêmicos8. Nesse estudo, entretanto, mais da metade dos gatos que desenvolveram azotemia em 12 meses tinha uma densidade urinária ≥1,035 como base de referência. Portanto, isso comprovou que a urina concentrada em um gato não descarta a presença de doença renal crônica precoce.
A mensuração de uma densidade urinária <1,035 pode ser indicativa de dano renal em gato não azotêmico, sobretudo em um animal desidratado. Observe que os gatos alimentados exclusivamente com alimentos úmidos podem ter uma densidade urinária baixa, no entanto, deve-se ter cuidado para descartar outras possíveis causas de diminuição na capacidade de concentração da urina, como a presença de diabetes mellitus ou o uso de diuréticos. Os biomarcadores de dano ou disfunção tubular que foram pesquisados no gato estão discutidos adiante.
BIOMARCADORES HORMONAIS PLASMÁTICOS
O paratormônio (PTH) é secretado pela glândula paratireóidea principalmente em resposta aos baixos níveis de cálcio ionizado no plasma (i. e., hipocalcemia). Esse hormônio aumenta a concentração plasmática de cálcio graças à maior absorção desse mineral a partir do intestino e do osso e à menor reabsorção renal de fosfato plasmático. Uma série de ensaios de PTH foi validada e utilizada em estudos prévios para medir esse hormônio no gato, mas infelizmente muitos desses ensaios não estão mais disponíveis. Em um estudo, constatou-se que o PTH se encontra aumentado em gatos não azotêmicos que vêm a desenvolver azotemia dentro de 12 meses, em comparação com aqueles que permanecem não azotêmicos9. Infelizmente, as mensurações do PTH se sobrepuseram consideravelmente entre os gatos que se tornaram azotêmicos àqueles que não desenvolveram azotemia, o que limita o seu uso como um biomarcador de azotemia iminente em cada gato individualmente. Além disso, o ensaio empregado nesse estudo não está mais disponível.
O fator de crescimento de fibroblastos 23 (FGF-23) é um hormônio que atua nos cotransportadores de sódio-fosfato nos túbulos renais proximais, de tal modo a diminuir a reabsorção de fosfato da urina. Esse fator é secretado por osteócitos e osteoblastos, em resposta ao aumento na concentração de fosfato plasmático. Por se tratar de uma proteína de baixo peso molecular, no entanto, o FGF-23 também é livremente filtrado pelo glomérulo e, portanto, a sua concentração aumenta à medida que a TFG diminui10. Um teste ELISA para seres humanos foi validado para uso com amostras de plasma felino11, mas atualmente a mensuração do FGF-23 não está disponível em laboratórios comerciais.

Figura 1. Diagrama para interpretação de biomarcadores no diagnóstico precoce da doença renal crônica em gatos.
interpretação de biomarcadores no diagnóstico precoce da doença renal crônica em gatos

  IMPLEMENTAÇÃO PRÁTICA DA NUTRIÇÃO

Até o momento, diversos biomarcadores foram avaliados como possíveis indicadores de azotemia iminente em gatos com doença renal crônica. Contudo, não existe um biomarcador “ideal” que possa ser utilizado para o diagnóstico precoce dessa doença em cada paciente felino individualmente. Foi demonstrado que muitos dos biomarcadores abordados nesse artigo são preditivos do desenvolvimento de azotemia em doença renal crônica em uma população de gatos e, portanto, podem ter utilidade como um auxílio no diagnóstico precoce de doença renal crônica felina. Atualmente, a melhor forma de avaliar a função renal é pela combinação dos marcadores disponíveis até o momento, particularmente com mensurações seriadas ao longo do tempo, sem a necessidade do cálculo direto da TFG. A Figura 1 mostra um diagrama para a interpretação dos biomarcadores disponíveis atualmente, com o objetivo de ajudar a identificar os pacientes felinos com doença renal crônica o mais precoce possível.

  CONSIDERAÇÕES FINAIS

O diagnóstico imediato da doença renal crônica no gato permite uma intervenção terapêutica precoce para retardar a evolução da doença e melhorar o tempo de sobrevida. O estudo de biomarcadores de doença renal crônica precoce em gatos constitui atualmente uma área de pesquisa e, embora nenhum biomarcador ideal tenha sido identificado até o momento em animais dessa espécie, é possível a identificação de novos biomarcadores em um futuro próximo com o uso da proteômica. Os biomarcadores mais úteis utilizados atualmente na clínica para a identificação precoce de doença renal crônica felina são as mensurações seriadas da concentração de creatinina sérica, em conjunto com o valor da densidade urinária e a relação de proteína:creatinina na urina.

   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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  2. Elliott J, Barber PJ. Feline chronic renal (adure. clinical findings in 80 cases diagnosed between 1992 and 1995. J Small Anim Pract 1998;39:78-85.
  3. Elliott J, Rawlings JM, Markwell PJ, et al. SurvivaI of cats with naturally occurring chronic renal failure: effect of dietary management. J Small Anim Pract 2000;41:235-242.
  4. Ross SJ, Osborne CA, Kirk CA, et al. Clinical evaluation of ditary modification for treatment of spontaneous chronic kidney disease in cats. J Am Vet Med Assoc 2006;229:949-957.
  5. DiBartola SP, Rutgers HC, Zack PM, et al. Clinico pathologic findings associated with chronic renal disease in cats: 74 cases (1973-1984). J Am Vet Med Assoc 1987;190:1196-1202.
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  7. Von Hendy-Willson VE, Pressler BM. An overview of glomerular filtration rate testing in dogs and cats. Vet J 2011;188:156-165.
  8. Jepson RE, Brodbelt D, Vallance C, et al. Evaluation of predictors of the development of azotemia in cats. J Vet Int Med 2009;23:806-813.
  9. Finch NC, Syme HM, Elliott J. Parathyroid hormone concentration in geriatric cats with various degrees of renal function. J Am Vet Med Assoc 2012;241:1326-1335.
  10. Filler G, Liu D, Huang SH, et al. Impaired GFR is the most important determinant for FGF-23 increase in chronic kidney disease. Clin & Biochem 2011;44:435-437.
  11. Geddes RF, Finch NC, Elliott J, et al. Fibroblast growth factor 23 in feline choronic kidney disease. J Vet Intern Med 2013;27:234-241.