As urolitíases ou cálculos urinários são um tipo específico de doença do trato urinário inferior, caracterizada pela presença de cristais (cristalúria) ou de concreções macroscópicas (pedras) associadas a manifestações clínicas do trato urinário inferior, como disúria, polaciúria e hematúria1. Na América do Norte e na Europa ocidental, as urolitíases são responsáveis por 15-20% das consultas relacionadas ao trato urinário inferior em gatos e cães2. O desenvolvimento de cálculos urinários está relacionado a diversos fatores de risco e pode ser causado por tipos diferentes de agregados minerais1.
A formação de um cálculo envolve alguns processos físico-químicos complexos. Os principais fatores são:
1. Supersaturação urinária resultando em formação de cristais (nucleação);
2. Efeitos de inibidores da nucleação mineral, da agregação e do crescimento de cristais;
3. Natureza dos cristaloides;
4. Efeitos dos promotores da agregação e do crescimento de cristais;
5. Efeitos da matriz não-cristaloide;
6. Retenção urinária ou trânsito urinário lento para que o processo ocorra3.
A supersaturação urinária é pré-requisito para a formação de um cálculo. Neste estágio, a cristalização pode ocorrer, pois a concentração dos íons cristalizantes é maior que seu produto de solubilidade (p. ex. a concentração em que os componentes de um cristal irão precipitar em um solvente [como a água] em uma determinada temperatura e – dependendo da natureza do cristal – em um determinado pH)4. De forma simples: é como quando sal é acrescido a um copo d’água. Se a quantidade de sal for pequena, a água o dissolverá. Quando a quantidade de sal ultrapassar a capacidade de dissolução da água, torna-se possível observar seus cristais do sal no fundo do copo.
O grau de supersaturação da urina afeta a nucleação, o crescimento e a agregação dos cristais – os três estágios que precedem a formação de cálculos macroscópicos. Portanto, o grau de supersaturação de um determinado cristal é um bom indicador do risco de formação de seu sal na urina, apesar de não considerar a influência de promotores e inibidores orgânicos de cristalização4. Com base na saturação, podemos classificar a urina em: solução estável (subsaturada) - é aquela onde as condições físico-químicas da urina não permitem a formação de cristais; solução metaestável (moderadamente saturada) - possui como característica a não formação espontânea de cristais, mas também não promove a dissolução de precipitados já formados; ou solução instável (supersaturada) – que se caracteriza por permitir a formação e a agregação de cristais e, consequentemente, a geração dos urólitos. A supersaturação relativa da urina (RSS) é uma metodologia que considera o pH urinário, o volume urinário e a concentração de 10 solutos, responsáveis pela formação dos principais cálculos em gatos e cães (cálcio, magnésio, oxalato, citrato, fosfato, sódio, potássio, amônio, sulfato e urato) da amostra. Tais dados são analisados por um programa de computador que calcula a concentração de um grande número de complexos formados pela interação dos diferentes íons presentes na amostra de urina em um dado pH. Assim, quanto mais baixo for o valor de RSS para um dado cristal, mais subsaturada estará a urina e menor a probalidade de um cálculo ser formado4, 5.
O cálculo do RSS urinário de gatos e cães alimentados com uma dieta específica pode ser utilizado para avaliar o efeito deste alimento na cristalização potencial da urina. Com base nesse resultado, mudanças na alimentação podem ser feitas para mitigar a probabilidade de formação de um cálculo. A forma mais simples de promover subsaturação urinária é por meio do aumento da ingestão hídrica e da produção urinária6-8. Isso pode ser feito de forma indireta, tanto pela utilização de alimentos úmidos, quanto pelo discreto aumento no teor de sódio no alimento seco (sempre dentro dos limites considerados seguros e dentro do recomendado por órgãos de renome, como o NRC9), para que assim ocorra o reflexo de sede no animal. Até o momento não há correlação entre um aumento moderado do consumo de sódio e o aumento da pressão arterial em animais saudáveis ou com Doença Renal Crônica 10, 11.

Figura: Zonas de RSS12 (adaptação).
A urolitíase é, tipicamente, uma doença de animais adultos, e a idade média de diagnóstico em cães é entre 6 e 7 anos. Cães apresentam predisposição racial para a formação de alguns urólitos e são mais susceptíveis à formação de cálculos de estruvita secundária à infecção bacteriana do que gatos1. Cadelas parecem ter maior risco no desenvolvimento de cálculos de estruvita, urato e fosfato de cálcio, enquanto pedras de oxalato, cistina e sílica são mais observadas em machos1. Contudo, mais de 90% dos cálculos de gatos e cães são compostos por estruvita (fosfato de amônio magnesiano hexa-hidratado) ou oxalato de cálcio mono ou di-hidratado3.
Cães de raças pequenas tendem a desenvolver urolitíase com maior frequência do que cães de raças grandes13, 14. Essa maior predisposição pode ser explicada pelo menor volume de urina produzida por estes cães e menor frequência na micção, levando a um maior tempo de retenção urinária na bexiga15, 16. A observação de que determinadas raças de cães estão em risco para a formação de cálculos suporta a hipótese de que alguns fatores ligados à urolitíase são herdados. Cálculos de estruvita são frequentemente diagnosticados em fêmeas de raças pequenas (até 10 kg quando adultas) e dentre as raças mais afetadas estão Bichon Frisé, Schnauzer miniatura, Shih Tzu e Pequinês17. Cálculos de oxalato de cálcio são muito comuns nas raças Bichon Frisé, Shih Tzu, Lhasa Apso, Yorkshire terrier e Schnauzer miniatura 13, 17, 18. Em estudo conduzido no Canadá, 60% dos cálculos analisados eram de cães de raças puras pequenas, e as cinco mais acometidas foram Shih Tzu, Schnauzer miniatura, Bichon Frisé, Lhasa Apso e Yorkshire terrier14. Um estudo verificou significativas diferenças na composição urinária de cães Schnauzer miniatura e Labradores, apesar de todos os animais serem alimentados com a mesma dieta. Os Schnauzer miniatura produziram menor volume urinário, apresentaram maior concentração de cálcio urinário, um pH mais alto e uma maior supersaturação urinária, o que pode contribuir com a alta prevalência de cálculos de oxalato de cálcio nesta raça16.
Cães pequenos também apresentam alto risco para o desenvolvimento de doença periodontal19. O depósito de cálculo dental pode ser limitado por meio de duas estratégias relacionadas ao alimento: abrasão mecânica do croquete ao dente (que promove a desorganização do biofilme bacteriano) e a inclusão de tripolifosfato de sódio na dieta (que quela o cálcio salivar, o que atrasa a calcificação da placa dental)20. O apetite destes animais também tende a ser mais caprichoso. Existem fatores ambientais para isto (p. ex. o fornecimento de alimento caseiro ao animal), mas também componentes anatômicos que podem colaborar com a seletividade de cães de pequeno porte. Quando comparamos o número de células olfatórias de acordo com o porte dos cães, cães pequenos têm um número significativamente menor destas em ser organismo. Por exemplo, Dachshunds têm 125 milhões de células olfativas enquanto Pastores Alemães têm 200 milhões. Já a raça Shih Tzu possui cerca de 60 milhões de células olfatórias. Mudanças no perfil aromático do alimento, na sua textura e formato estimulam a palatabilidade do animal, garantindo que a dieta seja consumida e assim promova todos os seus benefícios nutricionais.
O uso de um alimento específico (que contenha matérias-primas com baixos teores de minerais e compostos precursores de cristais), o controle do pH urinário formado (usado especialmente para a dissolução de cálculos de estruvita) e o uso de estratégias que aumentem o volume urinário podem, de forma conjunta, atuar na diminuição da recidiva de urólitos, contribuindo com a manutenção da qualidade de vida do paciente. É sabido que cães de pequeno porte são predispostos à formação de cálculos urinários, cálculos dentais e que apresentam apetite caprichoso. Um alimento especificamente formulado para este porte pode atuar nestas três características de uma só vez.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS |
- CASE, L. P. et al. Canine and feline nutrition – A resource for companion animal professionals. 3 ed. Missouri: Mosby Elsevier, 2011. p. 359-380.
- OSBORNE; C. A.; LULICH, J. P.; POLZIN, D. J. et al. Analysis of 77,000 canine uroliths. Perspectives from the Minnesota Urolith Center. Vet Clin of North Am Small Anim Pract, v. 29, n. 1, p. 17-38, 1999.
- FASCETTI, A. J.; DELANEY, S. J. Applied Veterinary Clinical Nutrition. 1 ed. Wiley-Blackwell: West Sussex, 2012. p. 269.
- QUÉAU, Y.; BIOURGE. V. Urinary relative supersaturation and urolithiasis risk. Vet Focus, v. 24, n. 1, p. 24-29, 2014.
- MARKWELL, P. J.; SMITH, B. H. E.; MCCARTHY, K. P. A non–invasive method for assessing the effect of diet on urinary calcium oxalate and struvite relative supersaturation in the cat. 61–67, 1999.
- LULICH, J. P.; OSBORNE, C. A.; THUNCHAI, R. Epidemiology of canine calcium oxalate uroliths – identifying risks factors. Vet Clin of North Am Small Anim Pract, v. 29, p. 113–122, 1999.
- LEKCHAROENSUK, C.; OSBORNE, C. A.; LULICH, J. P. et al. Associations between dry dietary factors and canine calcium oxalate uroliths. Am J Vet Res, v. 63, n. 3, p. 330-7, 2002.
- STEVENSON, A. E.; HYNDS, W. K.; MARKWELL, P. J. Effect of dietary moisture and sodium content on urine composition and calcium oxalate relative supersaturation in healthy miniature schnauzers and labrador retrievers. 145–151, 2003.
- NRC - Nutrient Requirements of dogs and cats. National Research Council of the National Academies. p. 162, 2006.
- LUCKSCHANDER et al. Dietary NaCl does not affect blood pressure in healthy cats. J Vet Intern Med, v. 18, n. 4, p. 463-7, 2004.
- REYNOLDS et al. Effects of dietary salt intake on renal function: a 2-year study in healthy aged cats. J Vet Intern Med, v. 27, p. 507-515, 2013.
- ROBERTSON, W. G. et al. J Nutrition, v.132, p.1637-1641S, 2002.
- HOUSTON, D. et al. Canine urolithiasis: a look at over 16,000 urolith submissions to the Canadian veterinary urolith centre from February 1998 to April 2003. Can Vet J, v. 45, p. 225 – 230, 2004.
- HOUSTON, D. et al. Canine and feline urolithiasis: examination over 50,000 urolith submissions to the Canadian Veterinary Urolith Centre from 1998 to 2008. Can Vet J, v. 50, p. 1263 -1268, 2009.
- LING, G. V. et al. Urolithiasis in dogs II: Breed prevalence and interrelations of breed sex age and mineral composition, Am J Vet Res, v. 59, n. 5, p. 630 – 642, 1998.
- STEVENSON, A. E.; MARKWELL, P. J. Comparison of urine composition of healthy Labrador Retrievers and Miniature Schnauzers. Am J Vet Res, v. 62, n. 1, p. 1782 – 1786, 2001.
- LOW, W. W. et al. Evaluation of trends in urolith composition and characteristics of dogs with urolithiasis: 25,499 cases (1985-2006). J Am Vet Med Assoc, v. 236, n. 2, p. 193-200, 2010.
- LEKCHAROENSUK, C.; LULICH, J. P.; OSBORNE, C. A. et al. Patient and environmental factors associated with calcium oxalate urolithiasis in dogs. J Am Vet Med Assoc, v. 217, p. 515-519, 2000.
- HARVEY, C. E.; SHOFER, F. S.; LASTER, L. Association of age and body weight with periodontal disease in North American dogs. J Vet Dent, v. 11, n. 3, p. 94-105, 1994.
- COX, E. R.; LEPINE A. J. Use of polyphosphates in canine diets to control tartar. IADR Conference, San Diego, 2002, Anais do congresso.