Diabetes mellitus em cães e gatos – é possível prevenir?

Diabetes mellitus em cães e gatos – é possível prevenir?

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     PROF. ÁLAN GOMES PÖPPL 

 

Introdução

A Diabetes mellitus (DM) é hoje considerada pela OMS (organização mundial da saúde) como uma pandemia mundial, com um crescente aumento na incidência em humanos, basicamente em decorrência da elevada prevalência de obesidade, que também está apresentando um aumento vertiginoso em sua ocorrência, levando as pessoas ao desenvolvimento do diabetes tipo II. Curiosamente, a incidência de diabetes vem aumentando também nos animais de companhia nas últimas décadas. Não só pela maior expectativa de vida dos animais, maior conhecimento da doença pelos veterinários, e maior cuidado dos proprietários com os animais de companhia, mas também pelas mudanças no modo de vida que os tempos modernos nos imprimem, levando à maior ocorrência das ditas “doenças da civilização”. Esta observação nos leva ao seguinte pensamento: estaríamos predispondo nossos animais de estimação ao desenvolvimento de diabetes em decorrência do nosso estilo de vida atual? A resposta é que sim. Ou seja, podemos pelo menos em parte, proteger nossos animais desta grave condição.

A DM é uma das doenças endócrinas mais comuns em cães e gatos, porém nas duas espécies a doença guarda peculiaridades bastante interessantes na origem, manifestações e tratamento. No caso do diabetes mellitus canino (DMC), temos um padrão de desenvolvimento que se assemelha a DM tipo I em humanos (origem imunomediada levando à incapacidade de secretar insulina, geralmente afetando indivíduos jovens – diabetes juvenil), ao passo que o diabetes mellitus felino (DMF) é bastante similar a DM tipo II observado em humanos (secundário à resistência insulínica observada na obesidade, frequentemente afetando indivíduos idosos – diabetes senil). Contudo, esta classificação médica não é bem aplicada na medicina veterinária. Os fatores que são utilizados para classificação da doença em humanos (idade ao diagnóstico, presença de autoanticorpos contra componentes das células beta produtoras de insulina, resposta a testes com secretagogos de insulina, mensuração de insulinemia, histórico familiar, etc.) não são usados rotineiramente em cães e gatos ou não estão disponíveis, de forma que uma classificação de acordo com necessidade de insulina para terapia torna-se mais adequada. Neste sentido, podemos dividir os pacientes em DM insulino-dependente (DMID), ou DM não insulino-dependente (DMNID).

Quando vemos porque um cão torna-se diabético, observamos que a DMC é basicamente uma DMID, ou seja, o surgimento dos sintomas no paciente está associado à hipoinsulinemia, mesmo que se tente estimular a secreção de insulina com glicose, por exemplo. Este processo é multifatorial. Cerca de 50% destes pacientes apresentam anticorpos anti componentes das células beta, porém a média de idade ao diagnóstico de diabetes é ao redor dos 10 anos de idade na espécie canina, o que leva a comparação da DMC com o diabetes latente autoimune do adulto (LADA) observado em humanos que desenvolvem DM tipo I depois de adultos. No entanto, raramente cães podem desenvolvem DMC ainda filhotes, secundário a hipoplasia ou abiotrofia congênita de células beta. Além disso, muitos cães tornam-se diabéticos por destruição de células beta secundária a pancreatites, ou ainda de forma idiopática. Fatores genéticos têm sido estudados após o desvendar do genoma canino, e a presença de certos haplótipos/polimorfismos no gene DLA (dog leukocyte antigen) predispõem ao surgimento da doença. Isto pode justificar o porquê da maior predisposição de certas raças, como o Poodle, Schnauzer, Dashchund, Cocker, dentre outras menos comuns em nosso meio. Autores ingleses propõem a classificação destes casos como diabéticos insulino-deficientes (IDD). No entanto, em muitos casos de DMC observam-se outros fatores etiológicos associados levando à hiperglicemia, os chamados diabéticos insulino-resistentes (IRD). O conceito de resistência à insulina remete a uma maior necessidade de insulina para obter o mesmo efeito hipoglicemiante. Estes pacientes são portadores de antagonismos hormonais promovidos por outros hormônios, especialmente glicocorticoides exógenos ou endógenos (hiperadrenocorticismo), progestágenos exógenos ou endógenos (diestro) e também pelo excesso de GH (hormônio do crescimento) e acromegalia.

Esta forma da doença secundária a exposição à progestágenos, é frequentemente comparada ao diabetes mellitus gestacional (DMG) humana, e representa um importante fator etiológico do diabetes em fêmeas caninas, uma vez que cerca de 70% das fêmeas que desenvolvem DMC estão no diestro. Além disso, fêmeas são cerca de 2 vezes mais afetadas que machos, e em países onde é feita a castração precoce, a incidência de DMC em machos e fêmeas é similar. Além dos progestágenos inibirem a ação da insulina a nível celular, a glândula mamária responde a progesterona sintetizando e secretando GH, que é um hormônio antagônico às ações da insulina. Esta forma de diabetes pode ser passível de remissão após o término do efeito do progestágeno, término do diestro ou gestação, ou após a ovário-histerectomia. Cães com diabetes insulino-resistente podem progredir para um estado insulino-deficiente como consequência da perda de células beta associada à hiperglicemia crônica (glicotoxicidade).

Além de todas essas possíveis causas para desenvolvimento de DMC, alguns fatores ambientais têm sido implicados como fatores de risco; como a obesidade, alimentação desequilibrada (altamente energética), sedentarismo, e até mesmo saúde oral, uma vez que a periodontite representa uma doença inflamatória crônica associada a resistência à insulina. Nosso estudo caso-controle com 110 pacientes diabéticos e 136 cães controles pareados por raça, sexo, idade e nível social, demonstra claramente que fatores como super-alimentação, dieta caseira associada ou não a alimento comercial, abuso de petiscos de uso veterinário ou humanos (tablefood) e sobrepeso/obesidade são fatores de risco ao desenvolvimento de DMC. Em contrapartida, alimentação estritamente à base de alimento comercial, atividade física frequente, escovação dental e castração foram identificados como fatores de proteção importantes. Apesar de não completamente aceita como uma causa de diabetes no cão, a obesidade está comprovadamente associada à resistência, à insulina, por influência de adipocitocinas produzidas pelo tecido adiposo que apresentam efeitos negativos sobre a sensibilidade à insulina e sua secreção. O entendimento atual da DMC preconiza que diversos fatores podem prejudicar as células beta levando a uma via final comum de incapacidade de secreção de insulina.

A espécie felina apresenta uma patogenia distinta. A DMF é frequentemente comparável a DM tipo II humana, uma vez em ambas espécies, a doença é resultado de resistência periférica à insulina e disfunção de células beta secundária a obesidade. Cerca de 85-90% dos pacientes desenvolvem DMF desta forma. A amilina é um peptídeo co-secretado pelas células beta que, quando em excesso, acumula-se nas ilhotas pancreáticas provocando amiloidose, disfunção e apoptose das células beta, sendo que a amiloidose das ilhotas pancreáticas é o principal marcador patológico da DM tipo II. Quando observamos o perfil do gato diabético, observamos quase sempre o mesmo histórico de castração, associado a ganho de peso posterior em decorrência de acesso irrestrito ao alimento, sendo que normalmente os pacientes são machos e apresentam idades superiores a 7-9 anos. O ganho de peso associado à resistência insulínica provoca DMNID em cerca de 50-70% dos felinos acometidos. Com o processo de resistência, as células beta aumentam a secreção de insulina e, por conseguinte, a deposição de amilina. O resultado final é a incapacidade de manutenção do estado normoglicêmico. Estes pacientes podem facilmente evoluir para um estado DMID com a evolução da glicotoxicidade, ou eventualmente sofrer remissão da doença caso um tratamento seja bem aplicado em tempo.

Fatores genéticos parecem estar envolvidos também na DMF, uma vez que o DM tipo II é uma interação de fatores genéticos com fatores ambientais. No entanto, a exceção da maior prevalência de DMF em Burmeses Australianos, não há uma predileção racial bem definida como na DMC. Fatores ambientais bem descritos em felinos são dieta e atividade física. Gatos são basicamente carnívoros, e a mudança de um padrão dietético rico em proteínas/baixo em carboidratos como na natureza, para um padrão rico em carboidratos/baixo em proteínas proporcionado por alguns alimentos comerciais (com teor de carboidratos superior a 50%) pode predispor alguns animais ao desenvolvimento de diabetes. Isto pode ser resultado de que algumas fontes de carboidratos, como o arroz, por exemplo, provocam elevados índices glicêmicos, e consequentes maiores picos de secreção de insulina, o que exige mais das células beta. Além disso, alimentos de elevado índice glicêmico tendem a oferecer menor saciedade e assim provocar maior ingestão de alimento. Apesar disto, a dieta não foi identificada como fator de risco em um estudo com Burmeses Australianos. Outro fator importante associado ao estilo de vida moderno é o sedentarismo, importante fator associado ao DM tipo II. Atualmente muitos gatos vivem isolados em ambientes fechados (indoor), o que predispõe ao sedentarismo, ganho de peso e resistência à insulina. Cães inativos são insulino-resistentes da mesma forma. O fato do gato não precisar mais caçar nem lutar, associado a dietas inadequadas é uma combinação extremamente diabetogênica, especialmente nos pacientes machos castrados que apresentam uma maior predisposição ao ganho de peso. Uma proporção pequena de felinos pode desenvolver DM secundário a outras condições que reduzam a concentração de células beta (pancreatite; adenocarninoma pancreático p.ex.) ou que induzam a resistência à insulina (hipertireoidismo; acromegalia; hiperadrenocorticismo; uso de progestágenos ou glicocorticoides).

Do ponto de vista de diagnóstico, no caso do paciente felino pode ser mais desafiador em virtude da hiperglicemia por estresse, mas de uma forma geral, a presença dos sinais clássicos de poliúria, polidipsia, polifagia e perda de peso associado à hiperglicemia de jejum e glicosúria persistentes são suficientes para fechar o diagnóstico em cães e gatos. Cães tendem a começar a apresentar glicosúria quando a glicemia se mantém cronicamente acima de 180-200 mg/dL, ao passo que o gato precisa de glicemias maiores (250-300 mg/dL) para apresentar glicosúria por conta de um limiar de reabsorção renal de glicose maior. Para confirmação do diagnóstico em gatos estressados, pode-se lançar mão da mensuração de proteínas glicosiladas (fructosamina) indicadoras de hiperglicemia nas últimas duas semanas, bem como a documentação de glicosúria no ambiente doméstico por meio do uso de fitas reagentes. Cães frequentemente apresentam-se com cataratas no momento do diagnóstico, as quais tendem a ter uma evolução bastante rápida, ao passo que felinos frequentemente se apresentam com astenia nos membros pélvicos associado a uma “postura plantígrada e/ou” provocado por uma neuropatia diabética.

Do ponto de vista terapêutico, o uso de insulina é fundamental na manutenção destes pacientes. No caso do DMC o uso de insulina é obrigatório para evitar complicações como a cetoacidose diabética e evitar a catarata, bem como para o controle dos sinais clínicos. Normalmente começo com uma dose de 0,35 – 0,5 U/kg de insulina NPH a cada 12h associada a uma dieta rica em fibras e com teor reduzido de carboidratos para minimizar a hiperglicemia pós-prandial e permitir um melhor controle glicêmico. Para cadelas, a castração é obrigatória como parte do tratamento, podendo inclusive haver remissão da doença. No caso da DMF, apesar de até 70% dos casos poderem ser classificados como DMNID, a administração de insulina exógena permite que cerca de 20% dos pacientes sofram remissão do estado diabético. O uso de hipoglicemiantes orais como a glipizida, apesar de efetivo em muitos casos, está associado a diversos efeitos colaterais e normalmente somente posterga a necessidade de insulinoterapia. Apesar de ser possível o uso de dietas ricas em fibras para gatos com objetivo de melhor controle da doença, um benefício maior será obtido com administração de dietas de elevado teor proteico e restritas em carboidratos simples; retomando em parte um perfil dietético mais natural para a espécie. Associado ao manejo dietético, a administração de insulina é recomendável, apesar da resposta à insulina do paciente felino ser bastante imprevisível. Normalmente tenho iniciado com insulina glardina para gatos na dose de 1 U/gato a cada 12h, orientando que a quantidade de alimento diário seja dividido e oferecido metade a cada aplicação de insulina. No entanto, o paciente felino fica com o alimento à disposição, em decorrência do hábito natural de beliscar várias vezes ao longo do dia. O mesmo comportamento não é recomendado para o paciente canino. Ambas espécies se beneficiam da prática de exercícios, uma vez que atividade física além de ajudar na redução de peso (quando necessária) também melhora a sensibilidade periférica à insulina. Para mais informações sobre tratamento, ajustes e monitoramento do paciente diabético, o leitor é referido a livros-texto de referência.

Conclusão

O DM é uma doença multifatorial potencialmente fatal, que além de poder trazer prejuízos à qualidade de vida do paciente, frequentemente causa transtornos na rotina dos proprietários, além de exigir mudanças no modo de vida do animal. Desta forma, uma abordagem preventiva pode ser adotada com objetivo de conscientizar clientes de que apesar de uma influência genética importante, pequenas atitudes e cuidados podem proteger o animal do desenvolvimento de diabetes. A alimentação estrita à base de um alimento balanceado e em quantidade adequada; evitar abuso de petiscos calóricos; cuidados com o peso e saúde oral do animal; estimular atividade física; e castração precoce da fêmea canina são quesitos que trazem ainda outros benefícios além da proteção contra o diabetes. Além do mais, este perfil alimentar desequilibrado também está frequentemente associado à ocorrência de pancreatite, outro fator de risco importante ao desenvolvimento de diabetes em ambas espécies.

 

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