Diarreia do desmame em filhotes caninos

Diarreia do desmame em filhotes caninos

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     AURÉLIEN GRELLET, DVM, PhD
        Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Royal Canin,
Aimargues, França

Tratamento da diarreia no do desmame

Em virtude dos inúmeros fatores que influenciam a saúde digestiva, recomenda-se uma abordagem global para controlar e tratar a diarreia do desmame. Alguns exemplos servem para ilustrar isso:

Situação 1: filhote canino com diarreia, mas sem sinais sistêmicos. 

Para os filhotes com diarreia, é muitas vezes recomendável que eles fiquem em jejum por 24-48 horas antes de reintroduzir pequenas quantidades de alimento de forma progressiva ao longo de 3-7 dias. Ainda que esse protocolo nunca tenha sido comprovado cientificamente, costuma ser a abordagem aceita. Contudo, estudos demonstraram que a alimentação enteral durante algum episódio diarreico agudo ajudará a manter a integridade do trato digestório dos animais, limitando a:

(a)  destruição das vilosidades intestinais;

(b)  permeabilidade da mucosa intestinal;

(c)  translocação de bactérias.

Os filhotes caninos que sofrem de parvovirose e recebem uma alimentação enteral precoce revelam não só um ganho de peso mais rápido, mas também uma melhor recuperação do apetite normal e da qualidade das fezes, em comparação com os filhotes mantidos em jejum até o vômito cessar (1). Alguns autores recomendam uma alimentação enteral mínima (ou seja, uma que ofereça 25% das necessidades energéticas diárias de manutenção de um cão com o uso de alimentos de alta digestibilidade), com o objetivo de limitar a exacerbação da diarreia, ao mesmo tempo em que garante os efeitos benéficos da nutrição enteral; em última análise, no entanto, a decisão em optar pela alimentação enteral fica a critério do veterinário.

Para qualquer infestação parasitária, o animal deve ser tratado da devida forma e também submetido a banho/tosa para reduzir a carga ambiental de parasitas. É recomendável a limpeza do ambiente e o uso de um desinfetante à base de amônio quaternário. O emprego de antibioticoterapia na presença de diarreia sem outros sinais clínicos é controverso, mas realmente só deve ser considerado O emprego de antibioticoterapia na presença de diarreia sem outros sinais clínicos é controverso, mas realmente só deve ser considerado em casos de:
(a) lesões graves da mucosa intestinal (i. e., sangue evidente nas fezes);

(b) reação inflamatória sistêmica (febre e leucocitose);

(c) coprocultura anormal.

Situação 2: filhote com diarreia e outros sinais clínicos. 

Nesse caso, as medidas descritas anteriormente devem ser implementadas, mas o animal também precisa ser hospitalizado. Como o risco de desidratação e hipovolemia é considerável, a fluidoterapia (de preferência, por via IV) torna-se essencial. Na presença de diarreia profusa, o filhote canino também pode apresentar hipoglicemia secundária à desnutrição acentuada, hipermetabolismo, função hepática inadequada e/ou sepse. Em pacientes gravemente acometidos, pode-se administrar uma fluidoterapia intravenosa inicial em forma de bólus de uma solução cristaloide isotônica, seguida de uma infusão em velocidade constante. O cálculo do volume a ser administrado deve levar em conta os déficits de líquido e as necessidades de manutenção do filhote, bem como as perdas induzidas por vômito e diarreia contínuos. A hipocalemia é um risco; mesmo que o animal tenha níveis normais de potássio na hospitalização, esses níveis devem ser reavaliados algumas horas após o início da fluidoterapia e corrigidos, se necessário. Note que os fluidos ricos em potássio não devem ser fornecidos em forma de bólus; qualquer infusão desse elemento não deve exceder 0,5 mEq/kg/hora (2).

Situação 3: filhote em canil de criação. 

Nessa condição, é importante controlar a diarreia do animal, quando necessário (conforme previamente descrito), mas também implementar alguns planos, a fim de minimizar o risco para outros animais. Isso requer medidas de higiene clínico-sanitárias.

O tratamento médico consiste na administração de vacinas e vermífugos. A vermifugação dependerá dos agentes parasitários presentes no estabelecimento de criação. A avaliação microscópica anual de pool de amostras fecais (ou seja, de um grupo de 3-5 cães) é uma medida valiosa, pois analisa três populações distintas:

(a)  cães machos reprodutores e cadelas em anestro;

(b)  animais prenhes e lactantes;

(c)  filhotes ao desmame (ou seja, com 4-8 semanas de vida).

Nos estabelecimentos onde existem várias ninhadas de diferentes idades simultaneamente, pode-se realizar o exame de dois pools fecais distintos: uma amostra de filhotes com 4-6 semanas de vida e outra amostra de filhotes entre 6-9 semanas de vida. Embora o tratamento antiparasitário dependa dos resultados, a escolha do medicamento certo é feita com base no espectro de ação, na duração e no custo do tratamento, bem como na frequência e na facilidade de administração. Em todos os casos, a vermifugação regular contra o Toxocara canis é recomendada, uma vez que esse parasita é altamente prevalente. Os filhotes podem ser vermifugados a cada 15 dias a partir de 2 semanas de vida até os 2 meses de idade; em seguida, a vermifugação é realizada mensalmente até os 6 meses de idade, com a fêmea (mãe) sendo tratada ao mesmo tempo que os filhotes.

O esquema de vacinação depende, em parte, da condição de cada animal individualmente. Se houver vários animais alojados no mesmo local, o protocolo deverá ser ajustado/adaptado, conforme a necessidade, nos casos em que há evidência de infecção pelo parvovírus canino (CPV). Estudos demonstraram que uma vacina monovalente contra o CPV administrada com 4 semanas de vida produz soroconversão acima do limiar de proteção em 80% dos filhotes (3); portanto, a vacinação precoce de rotina de filhotes caninos pode reduzir o impacto negativo exercido por esse vírus nos canis de criação.

Várias medidas de higiene também devem ser implementadas, a fim de limitar a disseminação da infecção e diminuir o risco de recorrência. Dentro de um canil de criação, é recomendável definir e manter áreas específicas separadas, tais como:

(a)  unidade de maternidade/creche;

(b)  setor de quarentena para novos hóspedes (animais recém-chegados);

(c)  área própria para adultos;

(d)  enfermaria para isolar os animais ao primeiro sinal de doença.

É essencial enfatizar a importância da limpeza e desinfecção de cada área e de seus equipamentos, embora também seja imperativo fazer uma clara diferenciação entre essas duas medidas muito distintas. A limpeza envolve o uso de produtos químicos ou recursos mecânicos (como esfregar o chão ou lavar o ambiente sob alta pressão com o uso de detergente) para remover materiais orgânicos. A maioria das sujidades (excrementos) é de natureza orgânica e, portanto, ácida; por essa razão, é aconselhável usar um detergente alcalino por seis de sete dias, empregando no sétimo dia (ou seja, uma vez por semana) um detergente ácido para eliminar as sujidades de composição mineral (cálcio). Os desinfetantes só devem ser usados depois que todas as superfícies forem limpas e enxaguadas, porque a maioria deles é inativada por materiais orgânicos. A escolha do(s) produto(s) depende de alguns fatores, tais como:

(a)  agente infeccioso identificado ou suspeito;

(b)  superfície a ser limpa/desinfetada;

(c)  facilidade de aplicação do produto;

(d)  perfil de segurança para os funcionários do canil.

A estabilidade de um desinfetante também é um fator importante, uma vez que determinados produtos, como hipoclorito de sódio (água sanitária), são instáveis após a diluição; por isso, é aconselhável fazer uma preparação extemporânea para esse tipo de desinfetante. Na verdade, nenhum produto é ideal para todas as situações.

Novas técnicas para avaliação da saúde digestiva

Biomarcadores da saúde digestiva

Conforme observado anteriormente, a diarreia do desmame origina-se de uma interação complexa entre hospedeiro/patógeno/ambiente. As pesquisas recentes têm se concentrado em vários marcadores gastrintestinais e sanguíneos não invasivos, com o objetivo de avaliar como determinados fatores (p. ex., estresse, agentes infecciosos, modificações da dieta, alterações da flora intestinal) podem afetar a saúde digestiva. Marcadores de permeabilidade intestinal (inibidor da alfa-1-proteinase), inflamação intestinal (calprotectina e proteína S100A12 fecais), função dos enterócitos (citrulina) e imunidade local (imunoglobulina A [IgA]) foram avaliados em filhotes caninos e os estudos iniciais são promissores; níveis alterados desses marcadores foram encontrados em filhotes caninos com problemas digestivos (particularmente, a infecção por CPV), mas os resultados variam com a idade e/ou a raça do animal. A utilidade desses marcadores para fins de diagnóstico, prognóstico e monitoramento em filhotes caninos com diarreia do desmame ainda precisa ser determinada, mas eles podem representar uma contribuição significativa na abordagem desse problema no futuro.

Metagenômica e metabolônica

O microbioma digestivo (flora intestinal) desempenha um papel importante na saúde dos indivíduos por:

(a)  estimular o sistema imunológico;

(b)  exercer influência sobre a estrutura do trato digestório;

(c)  participar da defesa contra os principais patógenos;

(d)  acrescentar benefícios nutricionais ao hospedeiro (como a produção de ácidos graxos de cadeia curta).

O estudo sobre a diversidade do microbioma de bactérias não é uma tarefa fácil, pois uma simples cultura bacteriana não identificará todo o espectro de microrganismos presentes no trato gastrintestinal de um animal. Contudo, novas técnicas (desenvolvidas principalmente com base no sequenciamento da subunidade 16S do RNA ribossômico bacteriano) permitem a identificação de todas as bactérias intestinais (microbiota) e ainda possibilitam uma melhor compreensão da complexidade da flora digestiva.

Paralelamente a esses estudos, novas pesquisas relatam a interação entre o microbioma e seu hospedeiro, analisando os metabólitos das bactérias e aqueles do hospedeiro em líquidos corporais, como soro e urina. Conhecida como metabolômica, essa técnica identificou vários problemas, incluindo uma disbiose intestinal associada à alteração do perfil metabólico global em cães adultos com diarreia aguda e uma modificação do microbioma em cães portadores saudáveis de Giárdia spp (4). Embora tais técnicas ainda estejam no campo da pesquisa, a análise do microbioma e a técnica de metabolômica podem ser úteis para avaliar a saúde digestiva de filhotes caninos perto do desmame no futuro.

Pontos-chave

  • A diarreia do desmame é um fenômeno complexo com origens multifatoriais. Diversas causas infecciosas e não infecciosas podem simultaneamente e em sinergia prejudicar a saúde do trato gastrintestinal.
  • O parvovírus canino tipo-2 é um dos principais agentes envolvidos na diarreia do desmame. Embora esse vírus possa causar sinais sistêmicos graves, ele pode simplesmente alterar a qualidade das fezes, sem afetar o estado de saúde geral.
  • A prevenção da diarreia do desmame requer a implementação de protocolos de profilaxia médica e manejo destinados à manutenção da saúde.

Conclusão

A qualidade das fezes de um cão pode ser influenciada pelas características do animal em si (raça e idade), pela presença de enteropátogenos (vírus, parasitas, bactérias) e pela dieta (erros na transição alimentar ou na qualidade dos alimentos). A diarreia do desmame é, portanto, um processo complexo resultante da influência e interação de diferentes fatores; dessa forma, o manejo desse problema exige uma abordagem global, envolvendo aspectos nutricionais, infecciosos e ambientais. E, o mais importante, a prevenção da diarreia do desmame sempre deve envolver um controle rigoroso da dieta; nesse caso, devem ser oferecidos alimentos reidratáveis de alta digestibilidade para garantir uma transição harmoniosa entre o leite e os alimentos sólidos. Também é importante o fracionamento da dieta em porções para evitar a diarreia por consumo excessivo; para tanto, a ração diária deve ser tipicamente dividida em quatro refeições pequenas para ajudar na digestão.

 Referências bibliográficas

1. Mohr AJ, Leisewitz AL, Jacobson LS, et al. Effect of early enteral nutrition on intestinal permeability, intestinal protein loss, and outcome in dogs with severe parvoviral enteritis. J Vet Intern Med 2003;17(6):791-798.

2. Brown AJ, Otto CM. Fluid therapy in vomiting and diarrhea. Vet Clin North Am Small Anim Pract 2008;38(3):653-675,xiii.

3. De Cramer KG, Stylianides E, van Vuuren M. Efficacy of vaccination at 4 and 6 weeks in the control of canine parvovirus. Vet Microbiol 2011;149(1-2):126-132. 30. Guard BC, Barr JW, Reddivari L, et al. Characterization of microbial dysbiosis and metabolomic changes in dogs with acute diarrhea. PLoS One 2015;10(5);e0127259.

4. Šlapeta J, Dowd SE, Alanazi AD, et al. Differences in the faecal microbiome of non-diarrhoeic clinically healthy dogs and cats associated with Giardia duodenalis infection: impact of hookworms and coccidia. Int J Parasit 2015;45(9-10):585-594.