Como abordar o gato azotêmico

Como abordar o gato azotêmico

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     JONATHAN ELLIOTT, MA, VET MB, PHD
        Cert SAC, Dipl. ECVPT, MRCVS
Royal Veterinary College, Londres, Reino Unido

 

Estudo de caso

Um gato doméstico de pelo curto, fêmea, castrada, de 15 anos de idade foi levado à clínica com um histórico de 3 meses de polidipsia. Os tutores também haviam notado certa perda de peso durante o mesmo período, mas estavam particularmente preocupados com o apetite da gata nesta última semana, pois havia diminuído; além disso, ela parecia fraca e letárgica.

Ao exame físico, os achados incluem:

  • Escore de condição corporal 2/5 – ou seja, a gata estava abaixo do peso ideal (3,0 kg);
  • Pelo opaco (sem brilho);
  • Estado de hidratação – levemente desidratado (mucosas um tanto pegajosas);
  • Presença de sopro cardíaco sistólico mais audível sobre o esterno do lado esquerdo (grau 2/6);
  • Rins pequenos e levemente irregulares à palpação;
  • Repleção vesical moderada à palpação abdominal.

O sangue foi coletado para a realização de triagem bioquímica e hemograma completo. A urina foi coletada por cistocentese e, em seguida, submetida à urinálise internamente na clínica.
O perfil hematológico estava dentro do intervalo de referência – o hematócrito era de 33% (27-48%).
Os resultados da urinálise realizada no laboratório foram os seguintes: densidade urinária: 1,014; proteína: +2; sangue: +2; pH: 5,0. Todos os outros resultados do teste de fita reagente foram negativos.

Perguntas

  • Como você classificaria a azotemia identificada neste caso e em que base você faria essa classificação?
  • Que outros testes diagnósticos de rotina você realizaria neste caso e qual é a justificativa para esses testes?

Azotemia

A azotemia indica uma “falha” do rim em excretar os produtos residuais nitrogenados do corpo, podendo ser categorizada como:

AZOTEMIA PRÉ-RENAL: consiste em uma redução da taxa de filtração glomerular (TFG), em virtude da queda no fluxo sanguíneo para os glomérulos; com frequência, trata-se de um quadro secundário a distúrbios hemodinâmicos decorrentes de choque circulatório e/ou desidratação grave, levando à hipotensão sistêmica.

AZOTEMIA RENAL INTRÍNSECA PRIMÁRIA: trata-se de uma doença primária dos rins que leva à perda de néfrons funcionais e, como resultado, a uma taxa de filtração glomerular (TFG) reduzida. A doença renal pode afetar estruturas como o aporte vascular, os glomérulos, os túbulos ou o compartimento intersticial, podendo ser aguda ou crônica.

AZOTEMIA PÓS-RENAL: deve-se a (i) um problema obstrutivo nos sistemas de drenagem/armazenamento urinário, levando ao refluxo de urina por pressão negativa no trato urinário, o qual é transmitido para o espaço de Bowman nos glomérulos, diminuindo ou impedindo a filtração; (ii) extravasamento de urina do sistema de coleta/armazenamento para a cavidade peritoneal, impedindo a eliminação de produtos residuais do corpo.
Nesse caso, a azotemia deve ser provisoriamente classificada como um quadro atribuído à doença renal intrínseca primária com consequente falha na excreção de produtos residuais, embora não tenhamos todas as informações necessárias que seriam desejáveis. Na gata em questão, não havia sinais clínicos sugestivos de doença obstrutiva do trato urinário com consequente ocorrência de azotemia nem um histórico de traumatismo abdominal rombo (contundente) que muitas vezes acompanha os casos em que há um extravasamento de urina para o abdômen. Uma investigação adicional mais detalhada ajudaria a descartar a presença de obstrução ureteral bilateral como causa da azotemia nesse caso (ver adiante a seção sobre outros testes diagnósticos).

A gata não tinha sinais clínicos de comprometimento circulatório grave que levaria a um declínio da taxa de filtração glomerular, embora ela estivesse levemente desidratada ao exame clínico. Apesar disso, no entanto, a gata estava produzindo uma urina diluída (com base nos resultados da densidade urinária) e, portanto, não estava conseguindo responder à desidratação através da conservação de água e da concentração de urina. Diante de um quadro de desidratação, os gatos devem concentrar a urina a uma densidade ≥ 1,040.
Uma vez determinada a presença de doença renal intrínseca primária como a causa mais provável de azotemia nesse caso, será preciso saber se o quadro se trata de um problema agudo ou crônico. É importante admitir que nenhum dos testes laboratoriais seja capaz de distinguir entre uma doença renal crônica descompensada e insuficiência renal aguda nesse caso. Embora a gata tenha manifestado inapetência, fraqueza e letargia nos últimos dias antes da apresentação à clínica, há várias características sugestivas de que o quadro se trate de uma doença renal crônica, tais como:

  1. Histórico crônico de perda de peso e polidipsia há três meses ou mais.
  2. Achado de rins retraídos, irregulares e diminuídos ao exame físico.
  3. Pelagem opaca (sem brilho) e baixo escore de condição corporal ao exame físico.

Todas essas características sugerem que essa gata tenha uma doença renal crônica como a causa da azotemia e tenha sofrido recentemente uma exacerbação do problema, o que levou à descompensação (perda do apetite, desidratação leve [branda], fraqueza e letargia). Em muitos casos, não é possível determinar se essa descompensação se deve a um insulto extrínseco adicional aos rins (outro episódio da doença primária responsável pelo dano renal) ou a uma lesão renal progressiva intrínseca causada pelos mecanismos adaptativos dos néfrons funcionais remanescentes, embora devam ser feitas tentativas para identificar um processo patológico extrínseco ativo.

Que outros testes diagnósticos de rotina você empreenderia nesse caso?

Tendo identificado o caso em questão como uma doença renal crônica descompensada, outros testes diagnósticos devem ser direcionados para:

  • Identificar uma doença extrínseca primária (com a expectativa de ser algo passível de tratamento), a qual pode ser responsável por esse episódio de descompensação
  • Identificar as complicações da síndrome urêmica que levam a:
  1. Diminuição na qualidade de vida do gato;
  2. Possível contribuição para o processo de lesão renal progressiva e, consequentemente, para uma evolução intrínseca da insuficiência renal até o estágio terminal.

Os exames realizados até o momento identificaram hipocalemia, hiperfosfatemia e acidose metabólica como complicações da síndrome urêmica, o que pode estar influenciando a qualidade de vida da gata e, sem dúvida, pode ser abordada na terapia desse caso. Há evidências razoáveis sugestivas de que a hiperfosfatemia contribua para a lesão renal progressiva e evidências duvidosas sugestivas de que as anormalidades de hipocalemia e acidose metabólica possam contribuir. Como rotina nesses casos, aqui existem alguns procedimentos que se devem realizar como testes diagnósticos:

1. EXAME DO SEDIMENTO URINÁRIO (+/- UROCULTURA)

2. AVALIAÇÃO DA EXCREÇÃO DE PROTEÍNA DA URINA

A relação de proteína:creatinina urinária é um parâmetro importante para determinar o momento da avaliação ou do estadiamento de um caso de doença renal crônica, uma vez que essa relação tem se mostrado preditiva de mortalidade por todas as causas. As implicações desse achado estão no fato de que os animais proteinúricos podem se beneficiar de terapia antiproteinúrica (p. ex., tratamento com inibidor da enzima conversora de angiotensina [ECA]), desde que se trate de proteinúria renal. Nesse caso, como o sedimento urinário era considerado ativo e pelo fato de haver evidências de infecção bacteriana do trato urinário, protelamos a avaliação da proteinúria até que isso fosse tratado com sucesso e a infecção tivesse desaparecido.

3. MEDIÇÃO DA PRESSÃO ARTERIAL

Se a pressão arterial sistólica estivesse entre 150 e 159 mmHg, a gata seria considerada com um leve risco de danos a órgãos-alvo; a pressão arterial sistólica entre 160 e 179 mmHg está associada a um risco moderado de danos a órgãos-alvo e pressões > 180 mmHg estão relacionadas com alto risco de danos a órgãos-alvo. Essa gata em particular tinha um sopro cardíaco, o que não é raro em gatos normotensos com doença renal crônica (prevalência de 30% em nossa clínica), embora seja mais comum em gatos com hipertensão (prevalência de 70%). Além disso, a hipocalemia é um fator de risco significativo associado à hipertensão felina. A pressão arterial foi mensurada inicialmente nessa gata e era de 146 mmHg. Nesses casos, é fundamental monitorar a pressão arterial ao longo do tempo, particularmente naqueles gatos com um quadro de descompensação e desidratação. Seria de grande importância a avaliação da pressão arterial após a reidratação e o retorno da paciente a um estado mais compensado.

4. AVALIAÇÃO DA EXCREÇÃO DE PROTEÍNA NA URINA

Como você trataria esse caso?

Existem vários problemas que foram identificados nesse caso e necessitam de atendimento imediato. Trata-se dos problemas que podem estar relacionados com a descompensação aguda da doença renal crônica. Tais problemas consistem em:

  • Desidratação com consequente exacerbação da azotemia;
  • Hipocalemia provavelmente resultante da anorexia e poliúria contínua;
  • Infecção do trato urinário que, se não tratada, pode se estender para os rins (ou já pode ter feito isso).

Nesse caso, é importante a instituição de fluidoterapia para reidratar a gata e corrigir as alterações de acidose metabólica e hipocalemia. É preciso lembrar que os gatos com doença renal crônica são suscetíveis à super-hidratação, bem como à desidratação, uma vez que os seus rins não conseguem excretar uma grande sobrecarga de fluídos. Portanto, é necessário tomar muito cuidado para garantir uma administração precisa (exata) da fluidoterapia (p. ex., uso de bomba de infusão). Como essa gata não estava vomitando, era permitida a utilização da via oral para repor o potássio; além disso, talvez seja possível dar prosseguimento ao tratamento intravenoso inicial no hospital com fluidos subcutâneos em um esquema ambulatorial. A maioria dos gatos fica mais feliz e satisfeita em seu próprio ambiente; por isso, é bem mais provável que os gatos se alimentem quando estão em casa do que quando se encontram no ambiente hospitalar.

Para corrigir a hipocalemia, foi utilizado um suplemento oral de potássio. Uma dose de 3 mEq de potássio duas vezes ao dia seria adequada inicialmente nessa gata, sendo aconselhável um acompanhamento através de exame de sangue após 5 a 7 dias.

A antibioticoterapia era essencial nesse caso. A escolha do antibiótico deve ser feita com base na cultura e no teste de sensibilidade (antibiograma), pois geralmente se recomenda um longo curso terapêutico (no mínimo, 4 semanas) na hipótese de que a infecção tenha se estendido para os rins e de que estamos lidando com um quadro de pielonefrite. Os microrganismos obtidos na cultura realizada em nossa clínica costumam ser a E. coli e a maioria deles é sensível à amoxicilina potencializada com clavulanato. A amoxicilina potencializada fica bem concentrada na urina e, mesmo em gatos com doença renal crônica, atinge concentrações urinárias 100 vezes maiores que a concentração plasmática. Também possui uma ação bactericida dependente do tempo. Há necessidade de tratamento prolongado para remover qualquer bolsa de infecção dentro do tecido do parênquima renal. Não é raro que as infecções do trato urinário apresentem recorrências em gatos com doença renal crônica e, por essa razão, o monitoramento de rotina do sedimento urinário com regularidade (+/− culturas de rotina) deve ser recomendado. Se a amoxicilina potencializada não for eficaz no tratamento dessas infecções, nossa segunda opção de linha terapêutica seria um antibiótico da classe das fluoroquinolonas.

Nesse estágio, nenhuma tentativa foi feita para modificar a dieta da gata, visando tratar a hiperfosfatemia. Os alvos terapêuticos mais importantes são fazer com que a gata se recupere da exacerbação aguda da doença renal crônica, corrigindo a desidratação, controlando a hipocalemia e tratando a infecção do trato urinário. Assim que a gata estiver mais estabilizada, será conveniente a instituição de tratamento dos problemas mais crônicos associados à doença renal crônica.

Resposta ao manejo nutricional

Na gata do caso em questão, a concentração de fosfato no plasma havia diminuído de 2,56 mmol/L (7,93 mg/dL) para 1,85 mmol/L (5,73 mg/dL) após 4 semanas do fornecimento da dieta clínica renal. Isso foi considerado uma resposta satisfatória ao tratamento e a gata estava ingerindo exclusivamente a dieta renal sem nada a mais. Decidimos então prosseguir com a dieta renal e monitorar a concentração plasmática de fosfato, em vez de tentar introduzir os quelantes de fosfato nesse momento. A concentração de creatinina no plasma estava em 275 mmol/L (3,11 mg/dL), enquanto a concentração de potássio também no plasma era de 4,2 mmol/L. A pressão arterial sistólica permaneceu abaixo do alvo em 150 mmHg. A urinálise realizada após a antibioticoterapia revelou um sedimento urinário inativo e a cultura bacteriana gerou resultados negativos. Nesse ponto do tratamento, foi mensurada e obtida uma relação de proteína:creatinina urinária de 0,56. O peso corporal da gata havia se estabilizado em 3,2 kg.

Nessa fase, a terapia de suplementação com potássio foi interrompida. Após mais 6 semanas de manejo nutricional e tratamento anti-hipertensivo, foi realizada uma reavaliação dessa gata. A concentração plasmática de fosfato estava em 1,55 mmol/L (4,8 mg/dL) (abaixo da meta de 1,6 mmol [4,95 mg/dL]), enquanto a creatinina permanecia estável no plasma em 290 mmol/L (3,28 mg/dL). A pressão arterial ainda se encontrava dentro do alvo desejado em 138 mmHg. A amostra de urina exibia um sedimento benigno (ou seja, inativo) e a relação de proteína:creatinina urinária era de 0,68. Nesse ponto, conversamos com os tutores sobre a instituição de tratamento adicional para controlar a proteinúria persistente. Isso envolveria a administração de outro medicamento por via oral (benazepril a uma dose de 2,5 mg uma vez ao dia) para tratar a proteinúria. O alvo pós-tratamento seria reduzir a relação de proteína:creatinina urinária para um nível abaixo de 0,4. Também seria preciso monitorar a pressão arterial de forma rigorosa para garantir que a combinação de anlodipino e benazepril não induzisse à hipotensão sistêmica. O benazepril diminui consistentemente a proteinúria em gatos com doença renal crônica e, em nossa experiência, não leva à hipotensão sistêmica quando combinado com o anlodipino.

Desfecho do caso em questão

A gata permaneceu estável com o manejo nutricional, bem como com a combinação de anlodipino e benazepril, por mais 6 meses. As relações de proteína:creatinina urinária após o início da terapia com o benazepril foram de 0,36 e 0,42. Após 6 meses, essa gata sofreu outra crise urêmica com desidratação grave e recorrência da infecção do trato urinário. Nessa altura, os tutores optaram pela eutanásia acreditando ser a melhor opção, em vez de prolongar o período de hospitalização e fluidoterapia.

 

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